O século XIX logo após a 1º Guerra Mundial (1914-1918), a Europa se transformaria radicalmente foi o adeus aos países governados por imperadores, nobreza financiando vultosas festas, exércitos tinham homens a cavalo e as damas andavam com pomposos vestidos. A Guerra transmudou tudo, rapidamente. Presidentes governavam; automóveis tomavam as ruas; o submarino e o avião infringiam leis da física até então conhecidas; em vez da ópera e valsa vienense, o rádio, o jazz, os discos e o cinema, questionavam o gosto erudito da nobreza; o mundo não se dividia mais entre os partidários do Antigo Regime e os defensores dos valores da Revolução Francesa. Nesse momento, a disputa se dava entre o capitalismo e socialismo.
Neste contexto flui a fascinante obra Contraponto de Aldous Huxley numa trama demonstrando todas essas mudanças rápidas e conflitantes. Abaixo transcrevo um diálogo interessante entre os membros da carcomida nobreza nos anos pós-guerra.
— Quem decide se uma moeda cai com a cara ou com a coroa voltada para o alto? — perguntou Illidge com desdém.
— Mas por que introduzir moedas na discussão? — retorquiu Spandrell.
— Por que vens com as moedas, quando estamos falando de seres humanos?
Considera o teu caso. Será que tens o sentimento de ser uma moeda quando te acontece alguma coisa?
— Pouco importa o sentimento que eu possa ter. Os sentimentos nada têm que ver com os fatos objetivos.
— Mas as sensações, essas sim, têm. A ciência é a racionalização das percepções dos nossos sentidos. Por que haveríamos de atribuir valor científico a uma certa classe de intuições psicológicas, quando a recusamos a todas as outras? A intuição direta duma ação providencial tem tantas probabilidades de ser um meio de conhecimento dos fatos objetivos quanto a intuição direta da cor azul ou da dureza. E quando as coisas nos acontecem não temos a sensação de ser uma moeda. Sentimos que os acontecimentos têm a sua significação, que foram arranjados. Especialmente quando eles se produzem em séries. Como se a moeda caísse de cara cem vezes seguidas, digamos.
— Concede-nos ao menos o mérito de cair de coroa — disse Philip rindo. — Nós somos os intelectuais, não te esqueças. Spandrell franziu o sobrolho; aquela frivolidade fora de propósito o chocava. Era um assunto que ele levava a sério.
— Quando penso em mim mesmo — disse ele —, fico convencido de que tudo quanto me aconteceu foi, de alguma maneira, arranjado previamente. Quando garoto, tive um prenúncio do que eu poderia ter vindo a ser, se os acontecimentos não houvessem intervindo... Algo completamente diverso deste "eu" real.
— Um anjinho, hein? — troçou Illidge.
Spandrell não tomou conhecimento da interrupção.
— Mas a partir dos meus quinze anos, começaram a acontecer-me coisas à semelhança profética do que sou atualmente.
Calou-se.
— De maneira que te cresceram um rabo e uns cascos fendidos, em vez dum halo e dum par de asas. Uma história triste. Nunca te feriu a atenção — continuou Illidge, voltando-se para Walter —, a ti, que és perito em matéria de arte, ou que pelo menos devias ser, nunca te feriu a atenção o fato de que todas as reproduções de anjos em quadros são absolutamente incorretas e anticientíficas? — Walter fez "não" com a cabeça. — Um homem de 70 quilos, se lhe crescessem asas, deveria receber ao mesmo tempo músculos colossais para as mover. E grandes músculos de voo significariam um esterno em proporção, como o das aves. Um anjo desse peso, se quisesse voar tão bem como um marreco, deveria ter um esterno que passasse de 4 ou 5 pés, pelo menos. Dize isso ao teu pai, na próxima vez em que ele tiver vontade de pintar uma Anunciação. Todos os Anjos Gabriéis que existem são escandalosamente inverossímeis.
pag. 290
O século XIX logo após a 1º Guerra Mundial (1914-1918), a Europa se transformaria radicalmente foi o adeus aos países governados por imperadores, nobreza financiando vultosas festas, exércitos tinham homens a cavalo e as damas andavam com pomposos vestidos. A Guerra transmudou tudo, rapidamente. Presidentes governavam; automóveis tomavam as ruas; o submarino e o avião infringiam leis da física até então conhecidas; em vez da ópera e valsa vienense, o rádio, o jazz, os discos e o cinema, questionavam o gosto erudito da nobreza; o mundo não se dividia mais entre os partidários do Antigo Regime e os defensores dos valores da Revolução Francesa. Nesse momento, a disputa se dava entre o capitalismo e socialismo.
Neste contexto flui a fascinante obra Contraponto de Aldous Huxley numa trama demonstrando todas essas mudanças rápidas e conflitantes. Abaixo transcrevo um diálogo interessante entre os membros da carcomida nobreza nos anos pós-guerra.
Neste contexto flui a fascinante obra Contraponto de Aldous Huxley numa trama demonstrando todas essas mudanças rápidas e conflitantes. Abaixo transcrevo um diálogo interessante entre os membros da carcomida nobreza nos anos pós-guerra.
— Quem decide se uma moeda cai com a cara ou com a coroa voltada para o alto? — perguntou Illidge com desdém.
— Mas por que introduzir moedas na discussão? — retorquiu Spandrell.
— Por que vens com as moedas, quando estamos falando de seres humanos?
Considera o teu caso. Será que tens o sentimento de ser uma moeda quando te acontece alguma coisa?
— Pouco importa o sentimento que eu possa ter. Os sentimentos nada têm que ver com os fatos objetivos.
— Mas as sensações, essas sim, têm. A ciência é a racionalização das percepções dos nossos sentidos. Por que haveríamos de atribuir valor científico a uma certa classe de intuições psicológicas, quando a recusamos a todas as outras? A intuição direta duma ação providencial tem tantas probabilidades de ser um meio de conhecimento dos fatos objetivos quanto a intuição direta da cor azul ou da dureza. E quando as coisas nos acontecem não temos a sensação de ser uma moeda. Sentimos que os acontecimentos têm a sua significação, que foram arranjados. Especialmente quando eles se produzem em séries. Como se a moeda caísse de cara cem vezes seguidas, digamos.
— Concede-nos ao menos o mérito de cair de coroa — disse Philip rindo. — Nós somos os intelectuais, não te esqueças. Spandrell franziu o sobrolho; aquela frivolidade fora de propósito o chocava. Era um assunto que ele levava a sério.
— Quando penso em mim mesmo — disse ele —, fico convencido de que tudo quanto me aconteceu foi, de alguma maneira, arranjado previamente. Quando garoto, tive um prenúncio do que eu poderia ter vindo a ser, se os acontecimentos não houvessem intervindo... Algo completamente diverso deste "eu" real.
— Um anjinho, hein? — troçou Illidge.
Spandrell não tomou conhecimento da interrupção.
— Mas a partir dos meus quinze anos, começaram a acontecer-me coisas à semelhança profética do que sou atualmente.
Calou-se.
— De maneira que te cresceram um rabo e uns cascos fendidos, em vez dum halo e dum par de asas. Uma história triste. Nunca te feriu a atenção — continuou Illidge, voltando-se para Walter —, a ti, que és perito em matéria de arte, ou que pelo menos devias ser, nunca te feriu a atenção o fato de que todas as reproduções de anjos em quadros são absolutamente incorretas e anticientíficas? — Walter fez "não" com a cabeça. — Um homem de 70 quilos, se lhe crescessem asas, deveria receber ao mesmo tempo músculos colossais para as mover. E grandes músculos de voo significariam um esterno em proporção, como o das aves. Um anjo desse peso, se quisesse voar tão bem como um marreco, deveria ter um esterno que passasse de 4 ou 5 pés, pelo menos. Dize isso ao teu pai, na próxima vez em que ele tiver vontade de pintar uma Anunciação. Todos os Anjos Gabriéis que existem são escandalosamente inverossímeis.
pag. 290
— Quem decide se uma moeda cai com a cara ou com a coroa voltada para o alto? — perguntou Illidge com desdém.
— Mas por que introduzir moedas na discussão? — retorquiu Spandrell.
— Por que vens com as moedas, quando estamos falando de seres humanos?
Considera o teu caso. Será que tens o sentimento de ser uma moeda quando te acontece alguma coisa?
— Pouco importa o sentimento que eu possa ter. Os sentimentos nada têm que ver com os fatos objetivos.
— Mas as sensações, essas sim, têm. A ciência é a racionalização das percepções dos nossos sentidos. Por que haveríamos de atribuir valor científico a uma certa classe de intuições psicológicas, quando a recusamos a todas as outras? A intuição direta duma ação providencial tem tantas probabilidades de ser um meio de conhecimento dos fatos objetivos quanto a intuição direta da cor azul ou da dureza. E quando as coisas nos acontecem não temos a sensação de ser uma moeda. Sentimos que os acontecimentos têm a sua significação, que foram arranjados. Especialmente quando eles se produzem em séries. Como se a moeda caísse de cara cem vezes seguidas, digamos.
— Concede-nos ao menos o mérito de cair de coroa — disse Philip rindo. — Nós somos os intelectuais, não te esqueças. Spandrell franziu o sobrolho; aquela frivolidade fora de propósito o chocava. Era um assunto que ele levava a sério.
— Quando penso em mim mesmo — disse ele —, fico convencido de que tudo quanto me aconteceu foi, de alguma maneira, arranjado previamente. Quando garoto, tive um prenúncio do que eu poderia ter vindo a ser, se os acontecimentos não houvessem intervindo... Algo completamente diverso deste "eu" real.
— Um anjinho, hein? — troçou Illidge.
Spandrell não tomou conhecimento da interrupção.
— Mas a partir dos meus quinze anos, começaram a acontecer-me coisas à semelhança profética do que sou atualmente.
Calou-se.
— De maneira que te cresceram um rabo e uns cascos fendidos, em vez dum halo e dum par de asas. Uma história triste. Nunca te feriu a atenção — continuou Illidge, voltando-se para Walter —, a ti, que és perito em matéria de arte, ou que pelo menos devias ser, nunca te feriu a atenção o fato de que todas as reproduções de anjos em quadros são absolutamente incorretas e anticientíficas? — Walter fez "não" com a cabeça. — Um homem de 70 quilos, se lhe crescessem asas, deveria receber ao mesmo tempo músculos colossais para as mover. E grandes músculos de voo significariam um esterno em proporção, como o das aves. Um anjo desse peso, se quisesse voar tão bem como um marreco, deveria ter um esterno que passasse de 4 ou 5 pés, pelo menos. Dize isso ao teu pai, na próxima vez em que ele tiver vontade de pintar uma Anunciação. Todos os Anjos Gabriéis que existem são escandalosamente inverossímeis.
— Por que vens com as moedas, quando estamos falando de seres humanos?
Considera o teu caso. Será que tens o sentimento de ser uma moeda quando te acontece alguma coisa?
— Pouco importa o sentimento que eu possa ter. Os sentimentos nada têm que ver com os fatos objetivos.
— Mas as sensações, essas sim, têm. A ciência é a racionalização das percepções dos nossos sentidos. Por que haveríamos de atribuir valor científico a uma certa classe de intuições psicológicas, quando a recusamos a todas as outras? A intuição direta duma ação providencial tem tantas probabilidades de ser um meio de conhecimento dos fatos objetivos quanto a intuição direta da cor azul ou da dureza. E quando as coisas nos acontecem não temos a sensação de ser uma moeda. Sentimos que os acontecimentos têm a sua significação, que foram arranjados. Especialmente quando eles se produzem em séries. Como se a moeda caísse de cara cem vezes seguidas, digamos.
— Concede-nos ao menos o mérito de cair de coroa — disse Philip rindo. — Nós somos os intelectuais, não te esqueças. Spandrell franziu o sobrolho; aquela frivolidade fora de propósito o chocava. Era um assunto que ele levava a sério.
— Quando penso em mim mesmo — disse ele —, fico convencido de que tudo quanto me aconteceu foi, de alguma maneira, arranjado previamente. Quando garoto, tive um prenúncio do que eu poderia ter vindo a ser, se os acontecimentos não houvessem intervindo... Algo completamente diverso deste "eu" real.
— Um anjinho, hein? — troçou Illidge.
Spandrell não tomou conhecimento da interrupção.
— Mas a partir dos meus quinze anos, começaram a acontecer-me coisas à semelhança profética do que sou atualmente.
Calou-se.
— De maneira que te cresceram um rabo e uns cascos fendidos, em vez dum halo e dum par de asas. Uma história triste. Nunca te feriu a atenção — continuou Illidge, voltando-se para Walter —, a ti, que és perito em matéria de arte, ou que pelo menos devias ser, nunca te feriu a atenção o fato de que todas as reproduções de anjos em quadros são absolutamente incorretas e anticientíficas? — Walter fez "não" com a cabeça. — Um homem de 70 quilos, se lhe crescessem asas, deveria receber ao mesmo tempo músculos colossais para as mover. E grandes músculos de voo significariam um esterno em proporção, como o das aves. Um anjo desse peso, se quisesse voar tão bem como um marreco, deveria ter um esterno que passasse de 4 ou 5 pés, pelo menos. Dize isso ao teu pai, na próxima vez em que ele tiver vontade de pintar uma Anunciação. Todos os Anjos Gabriéis que existem são escandalosamente inverossímeis.
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