quarta-feira, 29 de junho de 2016

Exercer a nossa influência sobre alguém é darmos a própria alma, Oscar Wilde.

     O irlandês Oscar Wilde, que se notabilizou sobretudo como dramaturgo, escreveu um único romance, O Retrato de Dorian Gray, obra que causou escândalo e controvérsia na Inglaterra vitoriana. Dorian Gray é um homem rico que vende a alma em troca da juventude eterna. A passagem do tempo não lhe altera a bela aparência, enquanto o seu retrato mágico envelhece e revela a decadência interior. Expressando as preo-cupações estéticas e os paradoxos morais de Wilde, a narrativa constitui uma reflexão sobre o envelhecimento, o prazer, o crime e o castigo.
     Pela genialidade de Wilde pinçei mais este texto da obra, texto ímpar de um gênio, vale a pena lê-lo:
  

    "- É verdade que a sua influência é assim tão má, Lord Henry? - perguntou-lhe, alguns momentos depois.
    - Uma boa influência é coisa que não existe, Mr. Gray.
   Toda a influência é imoral, imoral sob o ponto de vista cien-tífico.
   - Porquê?
 - Porque exercer a nossa influência sobre alguém é darmos a pró-pria alma. Esse alguém deixa de pensar com os pensamentos que lhe são inerentes, ou de se inflamar com as suas pró-prias paixões. As suas virtudes não lhe são reais. Os seus pecados - se é que os pecados existem - são emprestados. Tal pessoa passa a ser o eco da música de outrem, o ator de um papel que não foi escrito para si. O objetivo da vida é o nosso desenvolvimento pessoal. Compreender perfeitamente a nossa natureza - é para isso que estamos cá neste mundo. Hoje as pessoas temem-se a si próprias. Esqueceram o mais nobre de todos os deveres: o dever que cada um tem para consigo mesmo. É certo que não deixam de ser caritativos. Dão de comer aos que têm fome e vestem os pobres. Mas as suas almas andam famintas e nuas. A coragem desapareceu da nossa raça. Ou talvez nunca a tivéssemos tido. O temor da sociedade, que é a base da moral, o temor de Deus, que é o segredo da religião - eis as duas coisas que nos governam. E, contudo... - Volte a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian, seja um rapaz bem comportado - disse o pintor, absorvido pelo seu trabalho e apercebendo-se apenas de que surgira no rosto do jovem uma expressão que nunca lhe vira antes.
 O temor da sociedade, que é a base da moral, o temor de Deus, que é o segredo da religião - eis as duas coisas que nos governam. E, contudo... - Volte a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian, seja um rapaz bem comportado - disse o pintor, absorvido pelo seu trabalho e apercebendose apenas de que surgira no rosto do jovem uma expressão que nunca lhe vira antes. 
- E, contudo - continuou Lord Henry na sua voz Grave e musical, e fazendo um gracioso gesto com a mão, tão característico, mesmo já nos tempos de Eton -, se um homem devesse viver a sua vida em toda a plenitude, dar forma a todos os sentimentos, expressão a todos os pensamentos, realidade a todos os sonhos, creio que o mundo ganharia um novo impulso de alegria que nos levaria a esquecer todos os males do medievalismo e a regressar ao ideal helénico. Talvez mesmo a algo mais refinado e mais rico que o ideal helénico. Mas o mais ousado de todos nós teme-se a si mesmo. O selvagem mutilado que nós somos sobrevive tragicamente na auto-rejeição que frustra as nossas vidas. Somos punidos pelas nossas rejeições. Todo o impulso que esforçadamente asfixiamos fica a fermentar no nosso espírito, e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e mais não precisa, pois a acção é um processo de purificação. E nada fica, a não ser a lembrança de um prazer, ou o luxo de um pesar. Ceder a uma tentação é a única maneira de nos libertarmos dela. Se lhe resistimos, a alma enlanguesce, adoece com as saudades de tudo o que a si mesma proíbe, e de desejo por tudo o que as suas leis monstruosas converteram em monstruosidade e ilegalidade. Diz-se que as grandes realizações deste mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e só aí, que ocorrem os grandes erros do mundo. E até o senhor, Mr. Gray, que se encontra na flor da juventude, viveu paixões que o atemorizaram, teve pensamentos que o apavoraram e, quer acordado, quer a dormir, teve sonhos tais, que a sua simples lembrança, fariam corar de vergonha... 
     - Não continue, por favor! - balbuciou Dorian Gray -, Sinto-me confuso. Nem sei que dizer. Há decerto uma resposta adequada, eu é que a não consigo encontrar. Não diga nada. Deixe-me pensar ou, mais exatamente, deixe-me tentar não pensar.
    Durante cerca de dez minutos, permaneceu imóvel, os lábios entreabertos e um brilho estranho no olhar. Tinha uma vaga percepção de que dentro de si atuavam influências inteiramente novas. E, todavia, pareciam ter surgido de dentro de si mesmo. As poucas palavras que o amigo de Basílio lhe dirigira - palavras proferidas por acaso, sem dúvida, e intencionalmente paradoxais - tinham feito vibrar uma corda secreta, até então nunca tocada, que sentia agora latejar ao ritmo de inexplicáveis pulsações. 
     Também a música o perturbava assim, e muitas vezes o tinha emocionado. Mas a música não recorria às palavras. Criava em nós, não um novo mundo, mas sim outro caos. As palavras, simples palavras... como podiam ser terríveis! Como eram nítidas, e vívidas, e cruéis! Não conseguíamos fugir-lhes. E, no entanto, quanta magia sutil possuíam! Pareciam capazes de dar forma plástica a coisas informes e de possuir música própria tão suave como a da viola e do alaúde. Meras palavras!   
     Haveria alguma coisa tão real como as palavras? Haviam ocorrido coisas durante a sua meninice que, nesse tempo, não entendera. Compreendia-as agora. A vida surgia-lhe, de repente, com um colorido flamejante. Tinha a sensação de ter caminhado sobre o fogo. Por que não soubera antes?
     Com o seu sorriso sutil, Lord Henry ficou a observá-lo. Ele sabia qual o exato momento psicológico em que devia permanecer calado. Sentia um interesse enorme. Ficou surpreendido com a súbita impressão que as suas palavras haviam provocado, e, recordando um livro que lera aos dezesseis anos e que lhe desvendara muitas coisas que antes ignorava, interrogava-se se Dorian Gray estaria passando por experiência semelhante. Limitara-se a atirar uma seta para o ar. Teria atingido o alvo? Que rapaz tão fascinante! Hallward continuava a pintar, com aquele seu estilo ousado e magnífico, que possuía verdadeiro requinte e perfeita delicadeza, e que, pelo menos em arte, só provém da força interior. Nem se apercebeu do silêncio que se fizera. - Sinto-me cansado de estar de pé, Basílio - exclamou Dorian Gray, de repente. - Preciso de ir sentar-me um pouco lá fora no jardim. O ar aqui dentro está sufocante. 
     - Desculpe, meu amigo. Quando estou pintando, não consigo pensar em mais nada. É que você nunca posou tão bem, esteve perfeitamente imóvel. Captei o efeito que pretendia: os lábios entreabertos e o brilho do olhar. Não sei o que Harry lhe esteve a dizer, só sei que lhe provocou essa expressão maravilhosa no rosto. Provavelmente esteve a dirigir-lhe elogios. Mas não acredite em nenhuma das suas palavras. 
     - Pode ter a certeza de que ele não me fez elogios. Talvez seja por isso que não acredito em nada do que me disse. 
     - Sabe perfeitamente que acredita em tudo o que lhe disse - interveio Lord Henry, fitando-o com o olhar lânguido e sonhador. - Acompanho-o ao jardim. Está um calor horrível dentro do estúdio. Dê-nos qualquer coisa gelada para beber, Basílio, uma coisa que tenha morangos. 
     - Com certeza, Harry. Toque a campainha, e quando Parker aparecer transmitir-lhe-ei o seu pedido. Tenho que trabalhar este fundo, por isso só irei ter convosco mais logo. Não me retenha Dorian muito tempo. Nunca esteve em tão boa forma para pintar como hoje. Esta vai ser a minha obra-prima. Ela já é a minha obra-prima assim como está.
     Lord Henry foi para o jardim. Encontrou Dorian Gray com o rosto mergulhado nos grandes cachos frescos de lilases, absorvendo-lhes febrilmente o perfume como se fosse vinho. Aproximou-se dele e pousou-lhe a mão no ombro. 
     - Faz muito bem em fazer isso - murmurou. - Só os sentidos podem curar a alma, assim como só a alma pode curar os sentidos. 
     O rapaz sobressaltou-se e recuou. Estava de cabeça descoberta, e as folhas tinham-lhe despenteado os anéis rebeldes do cabelo, enleando-lhe as madeixas douradas. Tinha um olhar assustado, como o daquelas pessoas que são acordadas de repente. As narinas, de linhas delicadas, fremiam, e um nervo oculto fazia tremer os lábios rubros. 
     - É verdade - continuou Lord Henry -, esse é um dos grandes segredos da vida: curar a alma através dos sentidos, e os sentidos através da alma. O senhor, Mr. Gray, é uma maravilha da criação. Sabe mais do que julga que sabe, mas também sabe menos do que quer saber. 
     Dorian Gray, de semblante carregado, voltou a cabeça para o outro lado. Não podia deixar de gostar do homem alto e grácil que estava junto de si. Despertavam-lhe interesse o rosto romântico cor de azeitona e a sua expressão fatigada. Havia algo na voz Grave e lânguida que era extraordinariamente fascinante. Até as mãos, brancas e frias como flores, possuíam um estranho encanto. Quando falava, moviam-se como música, e pareciam ter uma linguagem própria. Mas tinha medo dele e tinha vergonha de ter medo. Por que havia de ter sido um desconhecido a revelar-lhe o seu próprio íntimo? Já se tinham passado meses desde que conhecera Basílio Hallward, contudo a amizade entre eles não o tinha modificado em nada. E, logo assim, de súbito, deparou com uma pessoa que parecia ter-lhe desvendado o mistério da vida. E o que havia a recear? Não era nenhum rapazinho, nem uma menina... Era absurdo sentir medo. 
     - Sentemo-nos à sombra - sugeriu Lord Henry. - Parker já trouxe as bebidas, e se o senhor permanecer mais tempo sob este sol escaldante, vai ficar com a pele estragada, e, depois, Basíliol não voltará a pintar o seu retrato. Na verdade, não se deveria deixar queimar pelo sol. Não lhe ficaria nada bem. 
     - E que importância tem isso? - exclamou Dorian Gray, a rir, sentando-se num banco ao fundo do jardim. 
     - Devia ter muita importância para si, Mr. Gray. - Porquê? - Porque tem uma juventude deslumbrante, e a juventude é a única coisa que vale a pena ter.
     - Não penso assim, Lord Henry.
     - Pois não, não pensa assim agora. Um dia, quando for velho, enrugado e feio, quando o pensamento lhe tiver sulcado a fronte de rugas, e a paixão, com suas chamas medonhas, lhe tiver crestado os lábios, sentirá então uma impressão terrível. Agora, aonde quer que vá, consegue seduzir todas as pessoas. Mas será sempre assim? Tem um rosto de beleza deslumbrante, Mr. Gray. Não precisa de fazer esse ar tão contrariado. É verdade. E a Beleza é uma forma de gênio, sendo mesmo superior ao gênio, pois não necessita de ser explicada. Ela faz parte dos grandes elementos do universo, como a luz do sol, a Primavera, ou o reflexo nas águas noturnas, dessa concha de prata a que chamamos lua. Não pode ser contestada. Tem o direito divino de um soberano. Transforma em príncipes os que a possuem. Sorri? Ah, quando a tiver perdido, deixará de sorrir... Por vezes, ouve-se dizer que a Beleza é apenas superficial. Talvez seja. Mas, ao menos, não é tão superficial como o Pensamento. Considero a Beleza a maravilha das maravilhas. Só os fúteis não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não o invisível. Sim, Mr. Gray, os deuses foram-lhe favoráveis. Mas os deuses dão agora, para tirar depois. O senhor tem tão-somente alguns anos para poder viver a vida em real plenitude. Quando a mocidade se for, com ela irá a sua beleza, e, então, cedo descobrirá que não lhe restaram êxitos, ou terá que se contentar com os êxitos insignificantes, que a lembrança do passado tornará mais amargos do que às derrotas. À medida que os meses vão minguando, eles vão-no aproximando de algo terrível. O tempo tem ciúmes de si, e faz guerra à primavera dos seus anos. Então, ficará com a pele macilenta, as faces encovadas e o olhar mortiço. Irá sofrer tormentos... Ah! Tome plena consciência da sua juventude enquanto a possuir. Não esbanje o ouro dos seus dias a dar ouvidos a gente maçadora que tenta aproveitar o fracasso irremediável, nem perca o seu tempo com os ignorantes, os medíocres e os boçais. São esses os objetivos doentios, os falsos ideais dos nossos dias. Viva, viva a vida maravilhosa que existe em si! Não desperdice nenhuma oportunidade, procure sempre novas sensações. Não tenha medo de nada... Um novo Hedonismo - eis o que faz falta ao nosso século. O senhor podia ser o seu símbolo vivo. Com essa sua personalidade, não existe nada que não possa fazer. O mundo pertence-lhe por um determinado tempo... No mesmo instante em que o conheci, Mr. Gray, vi que o senhor não tinha consciência da sua verdadeira natureza, nem do que poderia ser. Havia em si tantas coisas que me fascinaram, que achei que devia falar-lhe de si. Pensei que seria muito trágico se se fosse perder. É que é tão breve o tempo de duração da sua mocidade... tão breve. As vulgares flores silvestres fenecem, mas voltam a florir. Este laburno estará tão amarelo em Junho do ano que vem como está agora. No espaço de um mês, a clematite ficará coberta de estrelas cor de púrpura, e, ano após ano, a noite verde das suas folhas vai segurar as mesmas estrelas avermelhadas. Mas nós nunca recuperamos a nossa mocidade. O pulsar de alegria, que em si lateja aos vinte anos, perde o vigor. Os nossos membros tornam-se débeis, os sentidos definham. Vamos degenerando até nos transformarmos em fantoches hediondos, perseguidos pela lembrança das paixões que tanto temíamos, e das requintadas tentações a que não tínhamos coragem de ceder. Ah, juventude... juventude! Não há absolutamente mais nada no mundo senão a juventude.
    Com olhar de espanto, e cheio de dúvidas, Dorian Gray ouvia atentamente. Deixou cair no chão de cascalho a haste de lilás que segurava. Uma abelha peluda aproximou-se dela e andou zumbindo à sua volta por uns instantes. Depois, começou a trepar pelo maciço oval de minúsculas flores estreladas. Dorian observava-a, com aquele estranho interesse que fazemos por tomar pelas coisas triviais, quando coisas de maior importância nos causam medo, ou quando somos agitados por uma nova emoção que não sabemos definir, ou quando o nosso cérebro é subitamente assediado por um pensamento terrível que nos exorta a rendermo-nos. Pouco depois, a abelha voou para longe. Viu-a rastejar para o interior da campânula irisada de uma trepadeira. A flor pareceu estremecer e, logo, começou a balouçar suavemente."

Obra O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde - 
pags. 15/19



segunda-feira, 27 de junho de 2016

Cena indizível que Flaubert bem sabe descrever!

 Considerada a obra mais importante do francês Gustave Flaubert, Madame Bovary não tem nada de um romance de suspense moderno. Trata-se da história banal de uma mulher mal casada que trai o marido, o arruína e acaba se suicidando, por ter se perdido, perseguindo quimeras inspiradas em romances “água com açúcar”. Considerada a obra mais importante do francês Gustave Flaubert, Madame Bovary não tem nada de um romance de suspense moderno. Trata-se da história banal de uma mulher mal casada que trai o marido, o arruína e acaba se suicidando, por ter se perdido, perseguindo quimeras inspiradas em romances “água com açúcar”.
     A obra foi um escândalo à época por narrar a história de um adultério. Mas Flaubert faz uma perfeita descrição dos estados de espírito de Madame Bovary, chegada a sonhos com aventuras maravilhosas, tão precisa que foi forjado um termo para designar o mal que a consome: o bovarismo. Flaubert narra com maestria os anseios e medos de Madame Bovary pelo comportamento de mulher adúltera numa época que este comportamento era um pecado capital. Seleciono ora um trecho histriônico em que se deparam duas personagens que encontrava em transgressão e ambos dissimulam o susto do encontro inesperado nesta situação:

     "Pouco a pouco, aqueles receios de Rodolphe tomaram posse dela. O amor tinha começado por embriagá-la, não a deixando pensar em mais nada. Mas agora, que se lhe havia tornado indispensável à vida, receava sofrer-lhe a mínima perda, ou até mesmo perturbá-lo. Quando voltava de casa dele, lançava em torno de si olhares inquietos, vigiava cada vulto que passasse torno de si olhares inquietos, vigiava cada vulto que passasse no horizonte e cada postigo da vila donde pudesse se avistada. Escutava os passos, os gritos, o ruído das charruas; parava mais pálida e mais trémula do que as folhas dos choupos balouçando por cima da sua cabeça.. <     Certa manhã em que voltava para casa pareceu-lhe de repente distinguir o longo cano de uma carabina que dava a impressão de estar apontada para ela. Saía obliquamente do rebordo de um barril, meio escondido na vegetação, à beira de uma vala. Emma, quase a desmaiar de terror, continuou no entanto a avançar, quando do barril surgiu um homem, à semelhança daqueles diabos de mola que saltam repentinamente do fundo das caixinhas de surpresas. Tinha polainas afiveladas até aos joelhos, boné enfiado até aos olhos, os lábios a tremer e o nariz vermelho. Era Binet, o comandante dos bombeiros, à espera dos patos bravos.-  
Flickr     Devia ter avisado de longe! - exclamou ele.
     - Quando se vê uma espingarda, deve-se sempre dar sinal. Com este arra-zoado, o tesoureiro procurava dissimular o medo que aca
-bara de sentir; porque, existindo uma postura municipal que proibia a caça aos patos a não ser de barco, o senhor Binet, apesar do seu respeito pelas leis, encontrava-se em transgressão. De maneira que lhe parecia ver surgir, a cada instante, o guarda-florestal. Mas este sobressalto excitava-lhe o prazer e, sozinho dentro do seu barril, felicitava-se pela sorte e pela esperteza que tinha. Vendo Emma, pareceu aliviado de um grande peso e, entabulando imediatamente a conversação, disse:
     - Não faz calor nenhum, está um frio que corta!
     É verdade - balbuciou ela. - Venho de casa da ama onde está a minha filha. >
     - Ah, perfeitamente. Perfeitamente. Pois eu, tal como me vê, estou aqui desde madrugada; mas o tempo está tão enevoado que, a não ser que me venham parar as penas mesmo à boca do cano.
    - Passe muito bem, senhor Binet - interrompeu ela, voltando-lhe as costas.
     - Às suas ordens - replicou ele secamente. 
     E voltou a enfiar-se no barril.
     
     Emma arrependeu-se de ter deixado assim tão bruscamente o tesoureiro. Ele iria sem dúvida fazer conjecturas desfavoráveis. A história da ama era a pior desculpa, porque toda a gente sabia em Yonville que a pequenita dos Bovary há um ano já que voltara para casa dos pais. Além disso, não morava ninguém por ali perto e aquele caminho só dava passagem para a Huchette; portanto, Binet calculara donde ela vinha e não se calaria, daria à língua, era mais que certo! Emma ficou até à noite a torturar o espírito com todos os projetos de mentiras magináveis, vendo sempre na sua frente aquele caçador imbecil.

Madame Bovary, Gustavo Flauber, pags. 127/128


sábado, 25 de junho de 2016

Falece nos EUA o "brasilianista" Thomas Skidmore!

À epóca da ditadura não valia a pena ler jornais ou revistas. A censura com a sua afiada tesoura tolhia as notícias não agra-dáveis ao regime militar resultando um matérias dis-formes. Uma sensa-boria literalmente.
     Com esta inflexão arbitrária das in-formações políticas nacionais, era mais saboroso ler a política internacional. Época em que eu conhecia mais os políticos estrangeiros do que os homens da Arena.
      Outra fonte de informação era no campo da História. O index da ditadura militar era draconiano e medieval. Os brasilianistas para suprir a nossa sofreguidão de informações. Brasilianistas eram  pesquisadores ame-ricanos detinham um amplo acesso a documentos e dados arquivados, ao contrário dos intelectuais brasileiros, o que os colocava em uma situação de superioridade em relação aos pesquisadores natos.
    Mas se foi o tempo em que estas figuras alienígenas, típico gringo, a grande maioria norte-americanos, sem domínio total da nossa língua. Foram para as calendas gregas o que os anos 1970 e 1980 elevavam em  95% a proporção de estrangeiros que estudavam nosso país. Justamente por isso, implicava um olhar até exótico sobre o Brasil. Hoje, há uma novidade: o crescimento considerável de brasileiros radicados no exterior que se interessam pela terra de origem com a derrocada dos efeitos da ditadura. 
     Com efeito vi o registro da nota de falecimento do famoso brasilianista, Tho-mas Skidmore e me decidi reler as obras. Que decepção reler algo que com a minha miopia intelectual achei uma obra relevante.
     Bem definiu a revista Carta Capital: Morreu nos EUA o "brasilianista" Thomas Skidmore. Os registros de óbito, no Brasil, o con-duziram ao reino dos céus. Assim seja. Ele escreveu "Brasil - de Getúlio a Castelo, um livro fraco, no qual insinua que João Goulart poderia ser filos de Getúlio Vargas. Mera e boba especulação. Circula nos meios acadêmicos uma setença implacável sobre ele. Como historiador era chamado de "Skidmore or less".