sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O Grito de Satanás nas Melancias

O Grito de Satanás nas Melancias
                          
            Na manhã clara, música de vento e pássaros, o sol espargindo o ouro aquecedor sobre o telhado da igrejinha branca de Juazeirinho, beijando a asa dos pombos, o poeta Antônio Barbosa de Moraes apertava a mão de Severino Marinheiro na calçada da Prefeitura, o velho patriarca ajeitando o vinco do linho branco, acenando aos correligionários.
            O ônibus já estava buzinando no outro lado da pracinha, de saída para Campina Grande.  Barbosa toma sua cadeira e planta o olhar na paisagem bucólica, o veículo levantando poeira no rumo da Rainha da Borborema , sacolejando nas reticências de "boca-de-pilão, derrapando nas curvas sucessivas, coleando sobre os camaleões da estrada precária, buzinando, buzinando...
           
   Quando o coletivo fez a sua costumeira parada na calçada do Bar Sertanejo, em Soledade, Antônio Barbosa avistou José Alves Sobrinho que tomava café, entre amigos.  Sobrinho quer notícia de Zé Limeira e o colega informa:
            — Deixei agora mesmo em Juazeirinho, dizendo que viaja de tarde para o Teixeira.
            José Alves tinha necessidade de encontrar Zé Limeira.  Estava revendo muito, tinha que cantar com ele para ganhar o com que resgatar suas dívidas.  Barbosa orienta-o:
            — Se quiser vê-lo, vá correndo, antes que ele pegue embalagem com suas pernas automáticas e desapareça na estrada.
            Barbosa retoma sua cadeira no ônibus e ruma para Campina Grande, ao mesmo tempo em que José Alves Sobrinho também deixa a terra de Dom Delgado, com destino a Juazeirinho.  Vai pensando nas suas eternas dificuldades financeiras, nos títulos vencidos, no numerário para a próxima feira, na prestação do gringo.
            Nenhum repentista era mais bem pago do que o Poeta do Absurdo nem mais compreendido e amado.  José Alves sabia que, sejam quais forem as circunstâncias da cantoria, nenhum profissional do pinho viola esta lei: o resultado financeiro é dividido com os dois participantes, em partes iguais, e, se os protagonistas forem dez, não se faz caso porque a distribuição é eqüitativa.  Só Zé Limeira, portanto, salvaria a situação
do poeta angustiado.
            José Alves foi encontrar o Poeta do Absurdo no "Salão Juazeirinho", aguardando sua vez, distribuindo bombons e sorrisos com uma infinidade de meninos.
            Sobrinho abraça o velho colega e o calor do amplexo parece transmitir o sentido do apelo íntimo.  Limeira sabia sentir, como ninguém, quando o próximo queria ser ajudado.  Para ele as palavras, nessas ocasiões, eram desnecessárias.  Parecia apalpar o interior do amigo:
          

  — Foi de Deus eu encontrá o mestre, por modo que eu tenho um trato pra cantá em Cajazeiras, na Fazenda Melancias, e tava sem companheiro.  O mestre quer ir mais eu?
            José Alves Sobrinho ganha, de repente, a fisionomia de um náufrago que pisasse terra firme, os olhos iluminando o "Salão Juazeirinho".  Informa-se de Zé Limeira sobre o horário do transporte e sugere irem no primeiro ônibus da tarde: 
—Gostaria de viajar às treze horas?
            — O mestre pega a sopa que quisé, mais pega só, por modo que eu vou a pé.
            — Limeira, você não acha uma estupidez a gente caminhar trezentos quilômetros a pé?
            — Acho não, mestre.  Vosmicês pegue a sua sopa e me espere lá que com cinco dia eu chego. É a continha!
          
         Caminhada sessenta quilômetros diários, calculou rápido. Sobrinho ainda relutou, mas não conseguiu demover o velho bardo.  Aceitou, finalmente, a condição, e pegou a condução, deixando a terra de Severino Marinheiro sob os dardejos do sol-a-pino, os olhos repousando na paisagem adusta.
            Zé Limeira ajeita o matulão cheio de rapadura, farinha, camisas, queijo, carne-de-sol, fumo, cuecas, papel de cigarro, jaca, cordas de violão, garrafa de "zinebra", feixe de pena de codorniz para curar mordida de cobra, mel de uruçu, seus apetrechos de viagem.  Coloca o matulão no ombro esquerdo, ajeita a viola do lado oposto, agarra a bengala de aroeira e, da porta da barbearia, toma a direção do sertão.  Larga-se estrada adentro, com sua inabalável fé em Deus e em si, rompendo as distâncias, afrontando a solidão dos caminhos.
            Não fraquejava, não conhecia adversidades.  Era ele o sertanejo forte, Euclides da Cunha já o dissera.  "Quatro, cinco vela acesa/ Não faz eu temê a morte", já afirmara ele mesmo.  Dormia dentro do mato com uma tranqüilidade absoluta.  O rosário que lhe ofertara o Padre Cícero Romão, seu padrinho, afugentava feras e malfeitores.  Não temia assombrações.  A única coisa que lhe despertava certo temor era o apito do trem.  Aceitava o monstrengo a resfolegar nos seus solavancos, mas não podia nem imaginar no "grito de Satanás" que emitia o "imbuá de ferro".
            Despertava com os pássaros e mal a barra quebrava já ele estava na estrada, os dentes escovados com espuma de juá, andando, fumando, assoviando, alegre, sempre amanhecendo.  Era dono de si e do seu tempo.  O sol e a lua davam-lhe a orientação do tempo e isso lhe bastava, homem livre que era.  Quando o estômago reivindicava, não havia dificuldades: deixava a estrada e no mato acendia o fogo, assava carne seca, fazia café.  O queijo, a farinha e a rapadura estavam no matulão, a água corria no riacho, a viola e a rede do Ceará tinha-as ao lado.  A vida estava toda ali.  Em vez da sesta, o desafio da distância, o cumprimento do dever.  Seu dever era cantar, obrigação dos pássaros, destino das fontes, religião de Zé Limeira.  Cantar, que o canto é vida, e ele precisava vencer distâncias para viver.  Prosseguia na sua solitária e feliz peregrinação, numa cruzada sem atropelo de relógio, de nenhum planejamento, de nada convencional . Uma alma eternamente aurorescendo nas estradas, tocada de ventos e árvores.
            Zé Limeira caminha em direção a Cajazeiras.  Seus passos de puro-sangue, testemunhados pelo sol, pelas estrelas, desviando "bocas-de-pilão", subtraem as lonjuras.
           
    Aos poucos o viajor começa a divisar, muito ao longe, retalhos do casario antigo da cidade do Padre Rolim . O cruzeiro, a torrezinha da igreja, o frontespírio da Coletoria, o telhado da Estação, outro telhado, muitos telhados, numa paulatina gradação.  As casas vão tomando corpo, arrumadinhas, e na óptica do Poeta a cidade vem vindo, toda, na sua opulência sertaneja, aproximando-se de quem a procura.  No quinto dia as aipargatas-de-estaio de Zé Limeira pisam a terra do Padre Rolim.  Eram infalíveis os cálculos do andarilho.
            O poeta foi encontrar José Alves Sobrinho na sala de estar do Hotel Oriente.  Incrivelmente, trazia a fisionomia mais repousada do que a do jovem colega.  Já conhecia a cidade.  Por várias vezes ali havia passado, a pé, destinando-se a Juazeiro do Norte.  Ia pedir a bênção do padrinho Padre Cícero.  Nunca, todavia, parara na cidade que "ensinou a Paraíba a ler e a rezar".
           
       A hospitalidade de Pedro Rolim aliada à sua imensa admiração pelos poetas, não deixou que Zé Limeira e Sobrinho continuassem hóspedes do Hotel Oriente.  Seguiriam, no outro dia, para a Fazenda Melancias, de um irmão do saudoso Mecenas sertanejo, a trinta quilômetros, onde já era familiar a sextilha limeiriana:
                        "Na casa de pulistrico
                        Meu repente filupeia,
                        Na casa de fulustreco,
                        Fulubdga e fulubeia,
                        Na casa de maribondo
                        A gente dorme sem ceia."
           
  A difusora local registrou a presença dos poetas na cidade, anunciando a peleja que se faria na Fazenda Melancias.  A notícia correu célere pelos quatro cantos da urbe, despertando o interesse da gente simples que se deslocaria do centro urbano para ouvir o repente cintilando no nascedouro, vestindo-se de beleza e imortalidades através de José Alves Sobrinho, um gênio à beira da loucura, e de Zé Limeira, um louco à beira da genialidade.
            Os cantadores partiriam com o canto do galo para as Melancias.  Limeira criou um problema sério para seu anfitrião: só iria a pé.  Por mais que Pedro Rolim insistisse em oferecer automóvel, jipe, caminhão, camioneta, charrete, o Poeta continuava decidido, inflexível.  Só iria a pé. Era um sertanejo destemido, sincero, fiel à memória de seus ancestrais que andaram com os pés que Deus lhes deu.  Fez uma ponderação: se não fosse a pé, concordaria em ir de carro-de-boi, transporte abençoado.
         
   O primitivo veículo deixou a centenária cidade paraibana quando o sol, vermelho e glorioso, despontava por entre os serrotes, acordando o sertão.  Conduzia os poetas, um estudante e o carreiro, embevecidos com o fascínio da paisagem soberba.  O carro-de-boi, moroso e gemebundo, vencia, altaneiro, com os seus violinos desafinados, a variante acidentada, curvilínea, ornamentada por velhos angicos, baraúnas e oiticicas, a afugentar as lépidas seriemas assustadas que se refugiavam na espessa vegetação à margem de pequenas lagoas.
            O gemido saudoso do carro velho misturava-se à música dos pintassilgos, ecoava nos vaiados e na crista da serra, enquanto o roufenho choramingado dos cocões, das rodas de caviúna triturando o pedregulho, pareciam súplicas selvagens tragadas pelo barro duro.
          
  Saltava à memória dos viandantes a trova do poeta sertanejo Nô Gomes Filho:
                        "Boi-de-carro, vida amarga,
                        Como é dura a tua lida!
                        Bem maior que a tua carga
                        É o fardo da minha vida!"
            A junta de bois mansos, como que reclamando contra a canga, fungava e avançava, avançava e vencia o caminho, de curva em curva, de quebrada em quebrada, acordando os ecos das grotas onde mocós espantados amoquecavam-se nas lascas de pedras, tímidos e bárbaros.  De vez em quando os bois cismavam com os vôos rasos, desorientados dos espanta-boiadas que espirravam das moitas próximas.  Havia, aqui e acolá, vestígios de caborés que se recolhiam à fronde dos juazeiros, cantando o seu nostálgico "foi-foi-foi"... E a ternura do canto do carão anunciava bom inverno.
            O dia já andava pelo mundo e o carro-de-boi prosseguia na sua lentidão desafiando carrascais, escarpas e lombadas, com os pacientes animais, lerdos e heroicos  protestando com resmungos a cada açoite da macaca impiedosa no lombo grosso ou no cangote sofrido.  E o caminho quase todo por percorrer.
            Zé Limeira e José Alves Sobrinho aboiavam versejando, uma forma de encurtar a caminhada monótona, estafante.  A toada saudosa dos aboios parecia estimular a junta de bois cujos cascos fincavam-se na terra vermelha, levantando espirais de poeira, no rumo das Melancias de Raimundo Rolim.  Perdia-se nos longes do sertão, confundindo-se com os arrulhos soluçantes das arapongas, a voz dos cantadores:
"Anda à frente, boi mansinho,
                        Anda à frente sem parar!
                        Obedece ao teu carreiro
                        Que te ordena a caminhar!
                        Bem cedo nas Melancias
                        Hoje eu desejo chegar!!!
                        Êh êh êh êh êh êh êh...
                        Êh lá êh boooi....
                        êh lá, êhhh..."
           
    A junta arrastava-se morosa, capenga, estropiada, sob a chibata do sol escaldante, fazendo ligeiras paradas às proximidades das porteiras.
            A viagem se fazia agora por uma longa faixa de tabuleiros e carrascais, onde somente havia pedras, raízes de cansanção, chocalhos de cascavel e caveiras de boi—uma paisagem desoladora em que só se via, muito à distância, como sinais de vegetação, o verde agressivo dos juazeiros, árvore que resiste ao castigo das grandes estiagens, retalhos de esperança enfeitando um sertão desiludido—cenário desconcertante que a sensibilidade do poeta Eilzo Mattos pintou nos quatorze versos de "A Seca":
                        "Tudo é silêncio e calma.  Sopra quente
                        A brisa outrora ciciante e amena!
                        A terra, que era ubérrima e serena
                        Jaz calcinada pelo sol ardente!"
                        Eis a caatinga dantes tão virente:
                        Moitas sem folhas, secas — triste cena
                        Que nos invade o coração de pena
                        De uma cigarra ao estalar ingente!
                        O céu azul, azul, mira a paisagem
                        Desoladora, lúgubre, ardendo
                        Aos incruentos raios do sol alto...
                        E lá ao longe, qual uma miragem,
                        Um juazeiro a solidão rompendo
                        Na fronde abriga uma ave em sobressalto!"

 
            Os violinos desafinados do carro velho executavam, ininterruptamente, a canção da paciência, a melopéia triste da resignação sertaneja, do heroísmo de uma gente que acredita em Frei Damião e vê a grandeza de Deus em cada pingo de chuva; a canção de um bravo povo esquecido que trabalha, matando-se, para fazer a opulência das metrópoles.
            Os violinos bárbaros vencem a tarde.  Os viajores avistam, já sob as lamínulas de extasiante crepúsculo, o acolhedor verde-azul da vazante das Melancias, extremando, ao nascente, com o hotel balneário do Brejo das Freiras e, ao poente, com o primeiro município cearense.
            Havia ficado para trás a paisagem de marmeleiros, mandacarus, juazeiros, oiticicas, escarpas e lombadas.  Não mais os tabuleiros e carrascais de raízes de cansanção, chocalhos de cascavel e caveiras de boi.  O carro gemia sobre a fertilidade da Fazenda Melancias, uma Suíça em miniatura, onde não se fala em miséria.
        
    O olhar dos poetas perde-se no panorama de floridos laranjais, mangueiras amigas, frondosas jaqueiras, gameleiras seculares e uma interminável faixa de capim-santo, dando a impressão de imenso tapete verde.  O canto das jaçanãs à margem do açude era a saudação das Melancias à Musa do Absurdo.  Havia revoadas de concrizes, bem-te-vis, graúnas e pombas-rola que se iam agasalhar nos arvoredos, em trinados de amor que o homem não compreende.
            A junta de bois mansos, trôpega, arquejante, esbarra no terreiro da Casa Grande, libertando-se, por fim, da macaca e da canga, a noite já podendo mais do que o dia.  As ovelhas mansas atravessavam o pátio largo, enfileiradas, pulando, balindo, chocalhando, indo para o curral de pedra.  Os trabalhadores do eito deixavam seus enxadecos no pé da barreira, ao lado da pedra de amolar.
            Zé Limeira, José Alves Sobrinho e o estudante Nestor Rolim recebem, penetrando a alpendrada, as boas-vindas do fazendeiro Raimundo Rolim e de seu irmão Pedro que na cidade de Cajazeiras hospedara os cantadores.
            Limeira dirige-se ao proprietário e pergunta, abraçando-o:
            — O mestre aprecia repente de Fílanlumía?
            O tranqüilo fazendeiro diz que sim, que a cantoria é o único divertimento do sertão.
            — Apois o mestre hoje vai se impanziná de versos com esse caboco véio e o meu camarada.
            Por aqui — atalha Raimundo Rolim — é muito popular uma sextilha que o senhor teria improvisado em Patos, há muitos anos, se não me falha a memória:
                        "Nessa vida de viola
                        Vivo pra diante e pra trás,
                        Nunca mais tive alegria
                        Depois que perdi meus pais,
                        Minha vida é de caboco,
                        Quatro é muito, cinco é pouco,
                        Dez não dá, sete é demais.
            Foi isso mesmo, mestre, é tudo bonito assim.  O povo gosta de butá meus verso na cachola mais não sei por modo que o jorná não fala no meu nome, quando até a rádio de Pemambuco já falou — lamenta o Poeta do Absurdo, uma reclamação justa porque a imprensa pouca atenção tem dado aos poetas.
            Não era sem razão que Cesário Verde formulava queixas contra a imprensa européia, como denuncia o poema Contrariedades:
                        "O obstáculo estimula, toma-nos perversos,
                        Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
                        Por causa de um jornal me rejeitar, há dias,
                        Um folhetim de versos."
            Ora, se em 1875, época de grande efervescência literária na Europa, os jornais lisboetas, com seu romantismo anacrônico, fechavam-se para Cesário, Quental e Castilho, que diriam os contemporâneos de Zé Limeira, numa época de sérias transições sociais, quando a imprensa reserva todo seu espaço quase que exclusivamente para os temas econômicos, faia por indústria e cala por conveniência?
            O poeta não tinha consciência do problema, mas estranhava a indiferença dos jornais quanto à sua existência, o que era perfeitamente humano.  Queixava-se ao fazendeiro das Melancias, que, nos confins da Paraíba, surpreendia-o com a récita de uma sextilha sua.
            Apois é, mestre, um dia os filósofo bota eu no livro, por modo já botar o João Benedito, Pinto do Monteiro, Louro Batista, e um magote de camarada que canta que nem eu.
            A noite é clara, estrelada, grande.  Depois do jantar vão chegando os convidados e não convidados, em grupos, às dezenas, para ouvir um cantador de fama.  No terreiro os poetas contemplam a paisagem enluarada, a lua abençoando o rebanho bovino ao longo da várzea verde, os pingos de orvalho se fazendo pérolas, salpicando a ramada.  O batuque descompassado dos chocalhos dá um ar bucólico ao prenúncio da festa.
            Não pára de chegar gente a pé, em montarias, de caminhão, de charrete, de todos os lados, principalmente das bandas do Brejo das Freiras.  Não pára de chegar gente. Às vinte horas a mansão das Melancias comporta com problemas a multidão ávida de poesia.
            As moças da casa passam a servir uísque em abundância, mas Limeira prefere tomar "zinebra".  Não quer sair da sua simplicidade de caboclo que não anda em transporte motorizado.
            Possantes candeeiros a carbureto iluminam a sala espaçosa pintada a óleo, refletindo a luz forte nas lentes escuras que protegem os grandes olhos firmes do poeta, sob as grossas pestanas negras.
            Ali está Zé Limeira em carne e osso, centro de todos os olhares, com a inseparável flanela cor de sangue-de-boi enrolada ao pescoço, um nó volumoso à altura da laringe, um anelão azul encravado no nó.  Ali está Zé Limeira, ele mesmo.  "O cantadô malhó/Que a Paraíba criô-lo", os dedos apinhados de anéis a tanger as cordas da viola enfeitada, companheira maior de suas glórias, testemunha eterna de suas batalhas.  Ali está o Poeta do Absurdo, o bardo rústico, o aedo soberbo, os olhos a dançar nos quatro cantos da sala, as mãos extraindo sons diferentes da viola festiva.  Ali está Zé Limeira, o cantador favorito, a vedeta da noite.
          
     Os cantadores sentam-se, as violas já afinadas, os espectadores tomando seus lugares.  Sobrinho sabia que Limeira era endeusado no sertão, um mito, um pedestal incólume.  Sabia de tudo, por isso estava inseguro, apreensivo.  Cantaria para um povo rude que gostava dos versos de Zé Limeira, "o major cantador do sertão".
            — Minha gente, vamos ouvir poesia, já são nove horas da noite, já devia ter começado a festa-diz o fazendeiro Raimundo Rolim, em voz alta, para estimular os repentistas.  E grita:
            Viva as patativas do sertão!
            O povo aplaude calorosamente os donos da noite que já estão ponteando nas violas o ritmo nordestiníssimo do baião.  Sobrinho ingere uma dose forte de uísque, Limeira agarra meio copo de "zinebra".  O baião ganha seu compasso e o Poeta do Absurdo elimina a expectativa:
                        "Mestre Raimundo Rolim,
                        Capataz das Melancia,
                        Eu posso até lhe ensinar
                        Repente e pilogamia,
                        Abeia tem a ciência,
                        A lua é quem alumia".
            Sobrinho acompanha:
                        "Nesta noite a poesia
                        Vai cintilar no sertão.
                        Na voz deste pobre bardo
                        E Limeira, meu irmão,
                        Dois poetas que se uniram
                        Na mais santa comunhão."
            Limeira:
                        "Macho de abeia é zangão
                        E feme de homem é muié
                        Quem quisé vá no cortiço,
                        Chegue lá e beba o mé,
                        Cachorro vai pelo faro,
                        Quem tem linha é carrité."
            A platéia ovaciona delirantemente o poeta, desnorteando o seu parceiro que, não compreendendo Zé Limeira, assim fala da "camisa de onze varas' em que está metido:
                        "Deus, como é que com Zé
                        Limeira aqui cantarei?
                        Um cantador diferente
                        De quantos já enfrentei:
                        O que eu digo ele não sabe,
                        O que ele diz eu não sei."
            Limeira
                        "Home nasce pra ser rei,
                        A muié pra ser rainha,
                        Tá na Sagrada Escritura
                        O som dessa violinha
                        E depois de Deus querer
                        Água do pote é meizinha."
            Há um verdadeiro vivório.  As palmas não descontinuam e Sobrinho pensa em desistir, mas não pode se dar a esse luxo, pela necessidade financeira:
"Ó meu Deus, que sorte a minha,
                        Nesta noite brasileira
                        Eu sei que não canto ruim,
                        Minha voz é prazenteira,
                        Mas todos negam-me a palma
,
                       
Só aplaudem Zé Limeira."
            Soam algumas palmas convencionais, aplauso amarelo de misericórdia.  E o Poeta do Absurdo, na sua alegria própria dos vencedores, com a paz do mundo nos olhos de carvão:
"Lá na serra do Teixeira
                        Zé Limeira é o meu nome,
                        Eurico Dutra é um grande
                        Mas vive passando fome,
                        Ainda antonte eu peguei
                        Na perna dum lubisome."
            Sobrinho:
"Eu mudo até o meu nome
                        Se esse bicho apareceu!
                        Porém não vou afirmar
                        Que isso não ocorreu
                        Que é capaz de aqui dizerem
                        Que o mentiroso sou eu."
            Limeira:
"Getúlio Vargas morreu
                        Foi com saudade da esposa,
                        Lampião inda tá vivo
                        Morando perto de Sousa
                        Por detrás do Sete-Estrelo
                        Tem um casal de raposa."
            Em breve intervalo, Nestor Rolim redige o primeiro mote da cantoria:
                        "Canta, canta, cantador,
                        Que teu destino é cantar."
            Limeira inicia a glosação:
"Quando o carão tá cantando
                        É sinal que vem inverno,
                        Eu sou um nego moderno,
                        Foi não foi eu tou pensando.
                        Amanhã tô viajando
                        Pru sertão de Bogotá
                        Tico-tico no fubá,
                        Padre, juiz e doutor,
                        Canta, canta, cantador,
                        Que teu destino é cantar."
            Sobrinho glosa:
"Minha vida é esta cantiga,
                        Meu amor é esta viola...
                        Deus me botou nesta escola
                        Egrégia, sublime e antiga.
                        Se minha viola amiga,
                        Quiser um dia parar,
                        A dor não vou suportar
                        Porque ordena Nestor:
                        Canta, canta, cantador,
                        Que teu destino é cantar"
            O povo silencia, indiferente ao improviso. Irrompe, de momento, numa aclamação espalhafatosa:
            — Agora lá vai fogo!
            — Zé Limeira agora vai "desmoralizar a Medicina"
            — É o Castro Alves da viola! - Sapeca, Zé Limeira!...
            O Poeta não se torna enfatuado.  Sente-se feliz, agradece com um
sorriso largo o estímulo dos admiradores, para, tranqüilo, fazer valer a música da alma:
                        "Numa berada de serra
                        Dom Pedro ficou de coca,
                        Começou tirá taboca
                        Do cabeceira da terra,
                        Veio a febre berra-berra
                        Pru dentro dum caçuá,
                        Comendo o tamanduá
                        Da filha do Promotor,
                        Canta, canta, cantador,
                        Que teu destino é cantar."
            Sobrinho:
                        "Este tema deslumbrante
                        Que nos deu Nestor Rolim,
                        Despertou dentro de mim
                        Um sentimento gigante!
                        Por isso eu canto perante
                        O povo deste lugar,
                        Já fazendo despertar
                        A musa do sonhador..
                        Canta, canta, cantador,
                        Que teu destino é cantar."
            Um dos candeeiros apaga-se, por excesso de vento, e Limeira firma-se na motivação:
                        "Se apagou-se a lamparina
                        Prumode o vento assoprou,
                        Me adiscurpe, seu Nestor,
                        Caboco da Palestina.
                        Joguei minha lazarina
                        No tronco do jatobá,
                        Fiz Lampião avuá
                        Na baixa do corredor,
                        Canta, canta, cantador,
                        Que teu destino é cantar."
            O estudante redige um novo tema:
"Quem sabe o que sou, sou eu,
                        Sou eu quem sabe o que sou.
Sobrinho:
"Eu sei que dentro de mim
                        Há sentimento demais:
                        Alma e coração leais
                        Vão comigo até o fim,
                        Pois eu sei que sou assim
                        Desde que Deus me criou,
                        Por isso cantando vou
                        Sabendo o destino meu...
                        Quem sabe o que sou, sou eu,
                        Sou eu quem sabe o que sou."
            A declaração de autoconfiança não mereceu dos presentes tantas palmas quantas foram dirigidas à glosa limeiriana:
                        "Um dia eu passei pru dentro
                        Duma cancela deserta,
                        Tava a lua toda aberta
                        Debaixo dum pé-de-vento...
                        No terreiro do convento
                        Um canário me chamou,
                        Daí o Juiz chegou
                        Prá prendê João Elizeu...
                        Quem sabe o que sou, sou eu,
                        Sou eu quem sabe o que sou."
            Por coincidência, o homem que se encontrava mais próximo a Zé Limeira, de braços cruzados, roupa de mescla, cigarro-de-palha, chamava-se exatamente João Eliseu e estava sendo processado na Comarca de Antenor Navarro por haver atentado contra a vida de um vaqueiro da Fazenda Liberdade.  Coincidiu, ainda, que no exato momento em que Limeira terminava de fechar a glosa, entrava na sala um cidadão de fisionomia sóbria, austera, bem vestido, com ares de Juiz de Direito, olhando ligeiramente para o "réu".  João Elizeu não teve tempo para hesitar: saiu correndo em direção ao terreiro, derrubando pessoas, cadeiras, candeeiros — um autêntico pandemônio — embrenhou-se num fechado de jurubeba, indo sair no Brejo das Freiras, cerca de doze quilômetros das Melancias.  Uma inquietação estabeleceu-se por minutos, até que, esclarecida a coincidência, os poetas puderam recomeçar a peleja.  João Eliseu demandou ao Sul e nunca mais voltou à Paraíba.
            — Já vi um caboco mufino!  Só sendo brejeiro' Como é que um home tem sobrosso do verso desse nego véio?  Mais é isso mesmo, vaqueiro pra escutá Zé Limeira é preciso ter fôigo de sete gato!...
            As violas voltam a gemer na grande noite sertaneja. Nestor Rolim lembra aos cantadores um mote de Raymundo Asfora, de textura oriental:
                        "Trago nalma as tatuagens
                        Da minha origem cigana"
            Sobrinho:
                        "Já varei muitos desertos,
                        Fui senhor de muitas lendas,
                        Já povoei muitas tendas,
                        Vi muitos braços abertos,
                        Já cruzei caminhos certos
                        À frente de caravana,
                        Já vivi numa cabana
                        De onde avistava miragens,
                        Trago nalma as tatuagens,
                        Da minha origem cigana."
            Referindo-se a desertos, lendas, tendas, caravana, miragens, o violeiro demonstrou assimilar o sentido oriental do mote, fazendo Limeira exatamente o inverso:
                        "Sou caboco do Tauá,
                        Quem quiser me dissimú-lio,
                        Lampião matou Getúlio
                        No sertão do Ceará...
                        Viola, banjo e ganzá
                        Eu toco toda sumana,
                        O vento da palagana
                        Me açoita toda viage,
                        Trago na alma as tatuagens
                        Da minha origem cigana"
            Com certa descortesia, Sobrinho admoesta o colega:
                        "Limeira, você agora
                        Fez verdadeiro flagelo;
                        Botou a perder o belo
                        Mote de Raymundo Asfóra.
                        Tudo que disse foi fora
                        Daquela trilha bacana...
                        Dissipou a caravana,
                        Interrompeu as viagens...
                        Trago nalma as tatuagens
                        Da minha origem cigana."
            Limeira, ligeiramente ressentido:
                        "O que eu dixé você note
                        No caderno do futuro:
                        Limeira canta seguro
                        E sabe acochá o mote.
                        Cascavé que não dá bote,
                        Guachinin chupando cana,
                        Já passei uma sumana
                        Só vendendo catrevage,
                        Trago naíma as tatuagens
                        Da minha origem cigana "

Referindo-se a desertos, lendas, tendas, caravana, miragens, o violeiro demonstrou assimilar o sentido oriental do mote, fazendo Limeira exatamente o inverso:
 "Sou caboco do Tauá,
 Quem quiser me dissimú-lio,
 Lampião matou Getúlio
 No sertão do Ceará...
 Viola, banjo e ganzá
 Eu toco toda sumana,
 O vento da palagana
 Me açoita toda viage,
 Trago na alma as tatuagens
 Da minha origem cigana"
 Com certa descortesia, Sobrinho admoesta o colega:
 "Limeira, você agora
 Fez verdadeiro flagelo;
 Botou a perder o belo
 Mote de Raymundo Asfóra.
 Tudo que disse foi fora
 Daquela trilha bacana...
 Dissipou a caravana,
 Interrompeu as viagens...
 Trago nalma as tatuagens
 Da minha origem cigana."
 Limeira, ligeiramente ressentido:
 "O que eu dixé você note
 No caderno do futuro:
 Limeira canta seguro
 E sabe acochá o mote.
 Cascavé que não dá bote,
 Guachinin chupando cana,
 Já passei uma sumana
 Só vendendo catrevage,
 Trago naíma as tatuagens
 Da minha origem cigana "
Quatro horas. O tempo corria rápido. Novos litros de uísque. Alegria e satisfação na fisionomia geral. Nenhum bocejo. Raimundo Rolim mostrava a sua grande capacidade de anfitrião. Namorados valiam-se da penumbra que invadia os alpendres laterais. Chocalhos e mugidos ao longe, intermitentes. Coalhada e requeijão servindo-se em abundância, na saia, na cozinha, nos terraços. Bandejas atropelavam-se. A sacarrolha trabalhava. Rolos de fumo boró diminuíam. José Alves Sobrinho bebia uísque, Zé Limeira bebericava "zinebra", fumava cigarros-de-palha, cuspia no chão sem cerimônia, firme na sua sinceridade pétrea. Nada de sofisticação, de protocolos, de etiquetas, de esnobismo. Ali estava o sertanejo a quem se referia "Os Sertões", o único cérebro humano capaz de colocar um casal de raposas atrás do Sete-Estrelo, cantando, rindo, contagiando o meio ambiente, animando o povo. Estava de viola em punho, metrificando vocábulos inauditos, musicalizando atabalhoadas estrofes, sustentando a multidão insone, alegre, vibrante, sem fazer caso do quebrar da barra.
 Havia murmúrios nos terraços, chiar de bicos de carbureto, cédulas multiplicando-se na bandeja, flertei nas janelas, poesia nas almas e na noite.
 Vai alta a madrugada, hora de desafio, do salve-se quem poder. Nascem as primeiras résteas da matina e com elas surge o tira-teima. Redobra-se, agora, a atenção da platéia. Os repentistas pisam terreno escorregadiço, temerário, lançando-se, um contra o outro, na luta renhida. José Aives Sobrinho atira-se de peito aberto:
 "Vou lhe avisar agora, Zé Limeira
 (Dizem que quem avisa amigo é):
 Vou lhe amarrar agora a mão e o pé
 E lhe atirar naquela capoeira,
 Pra você não dizer tanta besteira
 Nesta noite em que Deus nos acolheu...
 Você hoje se esquece que nasceu
 E se lembra que eu sou bom e perfeito...
 Você hoje me paga o que tem feito
 Com os poetas mais fracos do que eu."
 Zé Limeira corisca na réplica:
 "Mais de trinta da sua qualistria
 Não me faz eu corrê nem tê sobrosso...
 Eu agarro a tacaca no pescoço
 E carrego pra minha freguesia.
 Viva João, viva Zé, viva Maria,
 Viva a lua que o rato não lambeu.
 Viva o rato que a lua não roeu,
 Zé Limeira só canta desse jeito,
 Você hoje me paga o que tem feito
 Com os poetas mais fracos do que eu."
 Uma torrente de palmas e vivas consagra o Poeta do Absurdo, desarmando, aparentemente, seu competidor. Sobrinho não recua, mesmo sentindo o gradativo crescimento da hostilidade à sua poesia:
 "Se esse negro não fosse tão cretino
 Eu não ia lhe dar esta lição...
 Seu Raimundo Rolim, peço perdão
 Por ter que aberturar esse felino...
 Vou mostrar como um vate nordestino
 Dá num besta que já se arrependeu...
 Esse negro um soldado já prendeu
 Por ladrão, quem soltou foi o Prefeito...
 Você hoje me paga o que tem feito
 Com os poetas mais fracos do que eu."
 Limeira, tranquilo e distante:
Eu me chamo Limeira da Nação,
 O malhó cantadô da redondeza...
 Jesus Cristo vendia miudeza...
 Ferrabraz tinho tudo no Japão,
 Um macaco enrabou a mãe do cão,
 O Prefeito do Brejo não morreu,
 O sertão nesse dia escureceu,
 Salomão trabalhou no mesmo eito,
 Você hoje me paga o que tem feito
 Com os poetas mais fracos do que eu."
 — Eu não digo? Zé Limeira é o maioral-bradava um admirador.
 — Pode encostar cantador que um só é pouco—berrava outro.
 Os litros de uísque substituíam-se, as bandejas diminuíam, a bandeja engordava.
 — Já dixe e tá dizido; eu sou Zé Limeira véio falado! Cantadô pra acompanha esse negro véio é perciso ter fôigo de sete gatol É ou não é, mestre Zé Alves? — gritava, eufórico, o favorito da platéia. Gritava e pedia a confirmação ao colega deprimido, desorientado, que balançava a cabeça "afirmativamente', como um autômato.
 O tempo parecia galopar. Os poetas cantavam já sem o auxílio dos possantes candeeiros. Em direção ao cercado da vazante vasta, vaqueiros aboiavam guiando o rebanho, os aboios confundiam-se com o gorjear dos rouxinóis, dos xexéus-de-bananeira, dos graúnas que, sobre os espinhos de canteiros iluminados, desprendiam o canto da liberdade que só os pássaros podem cantar.
Uma grande rosa de púrpuras saía do horizonte, abrindo-se, desmanchando-se em pétalas luminosas de vinho.
 Zé Limeira e José Alves Sobrinho sustentavam-se na peleja, com apenas três intervalos de vinte minutos durante a noite. As horas pulavam. Cinco horas. Os violeiros engalfinham-se no galope à beira mar, o mais difícil gênero da cantoria nordestina: estrofe de dez versos com onze sílabas, obrigatoriamente tônicas as segunda, quinta, oitava e décima primeira.  Àquela hora da manhã era o galope o teste de fogo para Limeira e Sobrinho. O Poeta do Absurdo, consciente de sua mestria nesse ângulo, do seu perfeito domínio no campo da metro-música, imprescindível requisito do beira-mar, expande-se em versos inimitáveis:
 "Eu canto galope no céu e na terra
 Prumode os vivente pudê me ispiá...
 Tacaca, mofumbo, raposa e preá,
 No campo, na baixa, na grata e na serra,
 Jumento, cavalo, garrote que berra,
 Garrote, cavalo, jumento muá,
 Vaqueiro, cangalha, chicote de pá,
 Chicote, cangalha, vaqueiro, sacola,
 Limeira é quem berra no som da viola
 Cantando galope na beira do má."
 Sobrinho acompanha, vestindo os versos da harmonia glauca exigida pelo galope, pois o estilo é por natureza glauco:
 "Provo que sou navegador romântico, Deixando o sertão para ir ao mirífico
 Mar que tanto adoro e que é o Pacífico,
 Entrando, depois, pelas águas do Atlântico.
 E nesse passeio de rumo oceânico
 Eu quero nos mares viver e sonhar...
 Bonitas sereias desejo pescar,
 Trazê-las na mão pra Raimundo Rolim,
 Pra mim e pra ele, pra ele e pra mim,
 Cantando galope na beira do mar. "
 Limeira, contrariamente, não sai do sertão. Agarra-se, com unhas e dentes, a jumento, garrote, cangalha, vaqueiro, mofumbo, serra—um quadro de sua terra em alto relevo pintado com as cores da fidelidade ecológica. É a expressão do seu amor telúrico imorredouro a afirmar que um coração sertanejo não pode pulsar em peito litorâneo. Enquanto José Alves Sobrinho singra os mares desvendando-lhes os mistérios, pescando sereias, seguindo trilhas marinhas, Limeira finca o pé no seu sertão de chapéu-decouro, mandacaru, cascavel, coroa-de-frade. E eis que arranca novamente numa autêntica pororoca de música e motivos selvagens:
 "Limeira só canta toada bonita
 Pra moça da roça, pra moça da rua...
 Braúna, chocalho de noite de lua,
 Cardeiro enfeitado de laço de fita.
 Carroça vestindo camisa de chita,
 Novena na casa do Sítio Tauá,
 Porteira, cancela, vareda, jucá,
 Mutuca, facheiro, vaiado, pagode,
 A cabra rodando na pimba do bode,
 Cantando galope na beira do má. "
 São nove horas. Não há o menor sinal de cansaço nos semblantes. A platéia permanece intacta, ingerindo uísque e poesia. Limeira continua endeusado, invicto. Sobrinho retoma o rumo de suas viagens marítimas:
 "Vou empreender uma nova viagem
 Por cima das águas do Glacial Ártico,
 Deixando pra trás o Glacial Antártico,
 Do Índico e Pacífico traçando a imagem...
 De praia, de golfo, baía, a paisagem,
 Eu pinto e completo com barco a boiar..
 Lagunas, enseadas eu quero esmaltar,
 Com portos fluviais, marítimos, lacustres,
 Porque estou cantando pra homens ilustres.
 No velho galope da beira do mar."
 Limeira:
 "Me chamo Limeira, Liminha, Limão,
 Muntado a cavalo no mato fechado,
 Ciência Regente conheço um bucado;
 Carcaça de burro de espora e gibão.
 Facheiro, jurema, colada, trovão,
 Novilha parida do lado de lá,
 A cabra berrando do lado de cá
 Com medo do bode da pimba de ponta, Limeira é quem fala, Limeira é quem conta.
 Cantando galope na beira do má."


 Sobrinho acompanha, vestindo os versos da harmonia glauca exigida pelo galope, pois o estilo é por natureza glauco:
 "Provo que sou navegador romântico, Deixando o sertão para ir ao mirífico
 Mar que tanto adoro e que é o Pacífico,
 Entrando, depois, pelas águas do Atlântico.
 E nesse passeio de rumo oceânico
 Eu quero nos mares viver e sonhar...
 Bonitas sereias desejo pescar,
 Trazê-las na mão pra Raimundo Rolim,
 Pra mim e pra ele, pra ele e pra mim,
 Cantando galope na beira do mar. "
 Limeira, contrariamente, não sai do sertão. Agarra-se, com unhas e dentes, a jumento, garrote, cangalha, vaqueiro, mofumbo, serra—um quadro de sua terra em alto relevo pintado com as cores da fidelidade ecológica. É a expressão do seu amor telúrico imorredouro a afirmar que um coração sertanejo não pode pulsar em peito litorâneo. Enquanto José Alves Sobrinho singra os mares desvendando-lhes os mistérios, pescando sereias, seguindo trilhas marinhas, Limeira finca o pé no seu sertão de chapéu-decouro, mandacaru, cascavel, coroa-de-frade. E eis que arranca novamente numa autêntica pororoca de música e motivos selvagens:
 "Limeira só canta toada bonita
 Pra moça da roça, pra moça da rua...
 Braúna, chocalho de noite de lua,
 Cardeiro enfeitado de laço de fita.
 Carroça vestindo camisa de chita,
 Novena na casa do Sítio Tauá,
 Porteira, cancela, vareda, jucá,
 Mutuca, facheiro, vaiado, pagode,
 A cabra rodando na pimba do bode,
 Cantando galope na beira do má. "
 São nove horas. Não há o menor sinal de cansaço nos semblantes. A platéia permanece intacta, ingerindo uísque e poesia. Limeira continua endeusado, invicto. Sobrinho retoma o rumo de suas viagens marítimas:
 "Vou empreender uma nova viagem
 Por cima das águas do Glacial Ártico,
 Deixando pra trás o Glacial Antártico,
 Do Índico e Pacífico traçando a imagem...
 De praia, de golfo, baía, a paisagem,
 Eu pinto e completo com barco a boiar..
 Lagunas, enseadas eu quero esmaltar,
 Com portos fluviais, marítimos, lacustres,
 Porque estou cantando pra homens ilustres.
 No velho galope da beira do mar."
 Limeira:
 "Me chamo Limeira, Liminha, Limão,
 Muntado a cavalo no mato fechado,
 Ciência Regente conheço um bucado;
 Carcaça de burro de espora e gibão.
 Facheiro, jurema, colada, trovão,
 Novilha parida do lado de lá,
 A cabra berrando do lado de cá
 Com medo do bode da pimba de ponta, Limeira é quem fala, Limeira é quem conta.
 Cantando galope na beira do má."
 Sobrinho:
 "Vou pelo oceano em missão geográfica,
 Cantando enseadas, lagunas e rios,
 Os volumes dágua, salgados e frios,
 Os golfos, as angras, bacia hidrográfica.
 Eu quero trazer a visão fotográfica
 Dos portos, das algas, por onde eu passar.
 Os álveos, as ilhas eu quero deixar,
 A praia voltando em roteiro romântico,
 E aí terminou meu passeio no Atlântico.
 Cantando galope na beira do mar"
 Limeira, sertanejo intransigente:
 "Não sei onde fica esse tá de oceano,
 Nem sei que pagode vem sê esse má...
 Eu sei onde fica Teixeira e Tauá,
 Que tem meus moleques vestido de pano...
 A minha patroa é quem traça meus prano,
 Cem culha de milho inda quero prantá,
 Farinha, lugume, feijão e jabá,
 Com mói de pimenta daquela bem braba,
 Valei-me São Pedro, Limeira se acaba,
 Cantando galope na beira do má."
 Sobrinho:
 "Viajo seguindo sem rumo nos mares,
 Revendo as ilhotas, penínsulas, ilhas,
 E dos arquipélagos mil maravilhas,
 Das belas gaivotas os lindos cantares...
 Gaivotas em bandos cantando nos ares
 E eu no meu barco, o oceano a singrar,
 Os peixes na frente correndo a nadar
 Nas ondas revoltas do mar tão bravio,
 E eu sigo remando em meu barco erradio,
 Cantando galope na beira do mar."
 Limeira:
 "Mourão de porteira, cangote de vaca,
 Cangote de vaca, mourão de porteira,
 A nega vexada chamando a parteira
 E o nego pulando na ponta da faca
 Preá, punaré, papa-vento, tacaca,
 Cachorro querendo lambê o preá,
 O pobre correndo pra aqui, pra cuiá,
 O mato fechando, se abrindo de banda.
 No tá do repente Limeira é quem manda
 Cantando galope na beira do má."
Sobrinho:
 "Não falo em porteira nem coisa nenhuma
 De velho Sertão em cantiga romântica.
 Pois aqui só cabe conversa oceânica,
 Falando de praia, de onda, de espuma,
 De peixes nadando por dentro da bruma,
 De velhos navios a água a cruzar..
 Eu pego uma lancha para viajar
 E lá no alto mar reviver pescarias
 Por cima das águas profundas e frias,
 Cantando galope na beira do mar."
 Limeira:
 "Eu sou Zé Limeira, caboco do mato,
 Capando carneiro no cerco do bode,
 Não gosto de feme que vai no pagode,
 O gato fareja no rastro do rato,
 Carcaça de besta, suvaco de pato,
 Jumento, raposa, cancão e preá,
 Sertão, Pernambuco, Sergipe e Pará,
 Pará, Pernambuco, Sergipe e Sertão,
 Dom Pedro Segundo de sela e gibão,
 Cantando galope na beira do má."
 Ao meio-dia as violas ainda retiniam no compasso contagiante do beira-mar, o povo todo ali ouvindo um cantador de fama, as cigarras estalando nas oiticicas do pátio circulante, as ovelhas mansas achegando-se, enfileiradas, branquinhas, à sombra das alpendradas.
 Somente um brusco imprevisto interromperia a grande peleja. Zé Limeira, caboclo forte, homem destemido, com quem para se cantar era preciso ter fôlego de sete gatos, que só temia os castigos de Deus e o "grito de Satanás", sufocou subitamente a voz do pinho, diante do inesperado: o trem apitou a cem metros da Casa-Grande das Melancias, um berro metálico sempre surpreendente, ecoando longe.
 De um salto, Zé Limeira estava no meio da saia, os olhos esbugalhados, a viola na mão, o desespero na testa, num pé e noutro, sobrando em si mesmo.  O comboio procedia de Patos e destinava-se ao Crato, em viagem rotineira, ali fazendo rápida parada obrigatória. O Poeta não observara, ao chegar às Melancias, os trilhos de ferro dividindo a várzea, o que concorreu para agigantar o seu espanto. Era o "grito de Satanás" a única coisa deste mundo que metia medo em Zé Limeira, homem forte do Sertão.
 —Me vala, Senhor São Bento! É o imbuá de ferros Donde vem esse danido? É Satanás gritando por modo de adivinhar seca no Sertão... espia o baita onde tá istirado!...
 Dentro do capinzal fechado estavam os enormes vagões engatados na locomotiva vermelha, um vermelho velho contrastando com o verde novo do capim.
 Limeira não poderia pensar na hipótese de aparecer um trem apitando por aquelas paragens tranqüilas de árvores e pássaros. Era uma realidade absurda. Na mansuetude da pequenina Suíça não havia lugar para semelhantes invasões. A vazante acolhedora das Melancias não poderia se prestar paraas expansões da Greet Western. Não, não podia. E o Poeta se valia do Senhor São Bento para afugentar o "imbuá de ferro".
 Ao cabo de cinco minutos a locomotiva emite novo apito, desta vez mais forte e mais longo, para mais longo e mais forte vexame do Poeta. E parte, a vomitar fumaça pela chaminé encardida, deixando aquele cheiro agressivo de carvão-de-pedra, aquela saudade e aquele espanto. O comboio alcança a sua marcha normal, sai a resfolegar sobre as linhas curvas, transpõe o vaiado florido, embrenha-se na sombra dos buritizais, descamba na planície vasta em demanda do Ceará, ao compasso matemático da música dos solavancos, rasgando o ventre do Sertão de Zé Limeira. E some-se...
 — Graças a Deus!—Zé Limeira balbucia, aliviado.
 No terreiro, nos alpendres, em torno da pedra de amolar, no oitão da casa de farinha, há agora, como de costume, ressonâncias da cantoria. Vão aparecendo fragmentos poéticos da peleja, décimas e sextilhas improvisadas nos momentos em que o gravador não funcionava (a despeito da habilidade do estudante Nestor Rolim), decoradas por matutos de boa memória.
 — De Zé Limeira eu só gravei uma sextilha, mais essa valeu pelo resto— diz um curioso, recitando com orgulho:
 "Na profissão de viola
 Vivo nesse vai-e-vem,
 Dom Pedro foi home forte
 Que sabia andá no trem,
 Se casou-se e foi morá
 Perto de Betelelém,"
 — Eu decorei mais de uma dúzia na hora, mas agora só me lembro dessas duas glosa, ô veio macho!—anuncia outro camponês:
 "No samba que nego dança
 Tem cheiro de muçambê
 Quem nunca viu venha vê
 Limeira fazendo trança...
 Foi lá perto de Esperança
 Que eu vi a truba passá,
 Cai aqui, cai acolá,
 Sargento, cabo e doutô.
 Canta, canta, cantadô
 Que teu destina é cantá."

 "Eu não sei fazer o doce
 mas sei quando ele tá bom,
 Moça que bota baton
 Pra mim ela já danou-se...
 Lampião se atrapalhou-se
 Ficou pra lá e pra cá,
 Foi quando no Ceará
 A guerra se arrebenta,
 Canta, canta, cantadô
 Que teu destino é cantá"
 — Bunito como o droga foi esse. Duvido qualquer bichim de oreia fazê isso- exclama outro circunstante:
"No tempo do Padre Eterno
 Getúlio já governava,
 Prantava feijão e fava
 Quando tinha bom inverno
 Naquele tempo moderno
 São João viajou pra cá,
 Dom Pedro correu pra lá,
 Escanchado num tratô...
 Canta, canta, cantadô
 Que teu destino é cantá."

 "Na corrida de mourão
 Quem corre mais é quem ganha,
 São Thomé vendia banha
 Na fogueira de São João...
 Foi na guerra do Japão
 Que se deu essa ingrizia,
 Camonge quage morria
 Da greguena berra-berra ,
 Quem se morre é quem se enterra
 Adeus, até outro dia "
 Não aparecia uma estrofe de José Alves Sobrinho. Seus versos não teriam entrado na cachola dos homens da roça, para constatar a consagração de Zé Limeira nas zonas rurais da Paraíba como cantador do povo, amado e compreendido, "primeiro sem segundo" na generalização da mentalidade camponesa.
 Zé Limeira e José Aives Sobrinho despedem-se do fazendeiro e sobem no carro, juntamente com o estudante Nestor Rolim e o carreiro. Acenam para a multidão feliz. Todos estão felizes: José Alves Sobrinho, com o numerário suficiente para o resgate de seus débitos; Zé Limeira, certo de haver proporcionado aquela felicidade ao colega; Nestor Rolim, conduzindo alguns metros de poesia nas fitas magnéticas; o carreiro, sonhando com os aboios que iria ouvir nos altos e baixos do conhecido itinerário.
 Mas, a junta de bois já ensaiando o pezunhado da partida, Zé Limeira salta no chão, inesperadamente, decidindo tomar outro rumo:
 — Arresorvi ir aqui pru dentro, por modo que perciso passá na casa de um cumprade, no Antenor Navarro. Quem quisé me acompanha, vamo mais eu, porém vivente pra acompanha esse nego véio é perciso ter foigo de sete gato!
Despediu-se de todos num aceno dramático, quebrou para o lado do nascente, com sua viola, seu matulão, sua bengala de aroeira, seu cigarro-de-palha e a sua fé em Deus, sumindo num partido de jurubeba e capim-de-planta, pisando firme nas alpargatas-de-estalo, misturando o seu assovio ao das cigarras.
Passou pelo Hotel Balneário do Brejo das Freiras, assoviando, tirando fumaça, na sua pisada firme de puro-sangue, ao crepúsculo. Com as primeiras estrelas, alcançou a cidade de Antenor Navarro, o pequeno país do Major Jacob Frantz.
    

  




Nenhum comentário:

Postar um comentário