domingo, 28 de setembro de 2014

Duelo semântico: Chatô X D. Hélder Câmara

D. Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, visitou Francisco de Assis Chateaubriand, de quem era amigo mas de cujas posições políticas, consideradas "esquerdizantes", sempre discordara publicamente. dias antes do seu falecimento do Chateaubriand e à saída do hospital, d. Hélder falou aos jornalistas em um tom que soava a extrema-unção:
- De Chateaubriand se pode dizer o melhor e o pior. Haverá quem diga horrores pensando nele, mas como não recordar as campanhas memoráveis que ele empreendeu?Dentro do maquiavélico, do chantagista, do cínico, o Pai saberá encontrar a criança, o poeta. Deus saberá julgá-lo.
  Como se estivesse se vingando das palavras do religioso, que nem chegara a ouvir, Chateaubriand publicaria no dia seguinte um artigo curto e duro sobre ele, intitulado "A inquietação do padre":
Vejo o arcebispo de Olinda e Recife como a ovelha da madre Igreja que mais e mais se afasta de seu redil. Não está cumprindo a missão de servo de Deus, ungido pelos princípios da eternidade espiritual de sua fé. Açoitado pelas paixões humanas, precipita-se em fúria, sem pouso, sem paz, num apostolado que seria o da Nova Igreja do Nordeste. D. Hélder se faz, sem ter a mesma envergadura de pensamento, um Carlos Lacerda de saias.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Chatô X Chateaubriand

Em menos de trinta linhas, a nota resumia um começo de incêndio que em pouco tempo iria se transformar em uma guerra de proporções nacionais contra o maior sucesso da imprensa brasileira dos últimos anos, o jornal Última Hora, de Samuel Wainer.

Segundo a notícia da Time, o jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, descobrira que a Última Hora tinha sido montada quase que integralmente com dinheiro fornecido pelo Banco do Brasil, que agora ameaçava cobrar a dívida.
A crise que merecera espaço na imprensa dos Estados Unidos começara numa madrugada dos primeiros dias de junho. Carlos Castelo Branco, que deixara o posto de chefe da seção de política de O Jornal para ser editor-geral da Tribuna, chegara à redação para preparar a edição do dia seguinte do jornal. Em meio a um amontoado de reportagens e artigos que tinham sido deixados de lado pelos editores, encontrou uma entrevista feita pelo repórter Natalício Norberto com o ex-deputado Herófilo Azambuja, na qual este afirmava que tinha sido nomeado pelo Banco do Brasil interventor na empresa Érica, editora da Última Hora. O entrevistado contava tambémque o banco financiara quase tudo na montagem do jornal de Samuel Wainer, da compra do prédio e das máquinas até as aquisições regulares de papel. Azambuja revelava que fora nomeado para iniciar um processo de cobrança do débito, que até então não tinha sido pago por Wainer.

Sem grande estardalhaço, como era de seu estilo, Castelo Branco recolheu a reportagem e mandou buscar a pasta de fotos de Samuel Wainer no arquivo. Escolheu uma fotografia em que o dono de Última Hora aparecia de blak-tie, sentado sobre uma mesa, com um copo de uísque na mão. Chamou o diagramador, mandou abrir a foto em metade da primeira página, sentou-se à máquina e datilografou a manchete principal:

"Esbanjavam dinheiro do Banco do Brasil". No interior do jornal, mandou publicar a íntegra da entrevista feita por Natalício Norberto. Foi até a mesa de Aluísio Alves, diretor de redação da Tribuna, e submeteu a ele a prova da primeira página. Alves se esquivou: 
Recorreram a Medeiros Lima, diretor do jornal, que concordou com Alves: era uma denúncia grave demais, baseada em uma reportagem de um estreante e não deveria ser publicada. Castelo fincou pé:

- Eu só não publico se a ordem vier do Lacerda. Vamos chamá-lo à redação.


Minutos depois o dono estava no jornal. Ouviu as opiniões dos três, sentou-se, leu cuidadosamente a entrevista, viu a primeira página e jogou-a sobre uma mesa, decidido:

- Castelo, rode o jornal com a entrevista do jeito que está.

O país começava a pegar fogo. Última Hora tentou responder com uma edição extra, afirmando que Azambuja tinha estado no jornal, Banco do Brasil. Mas a tempestade já estava armada. Uma semana depois, o acuado Samuel Wainer daria o troco a Lacerda.

Conseguiu tirar da Tribuna e contratar para trabalhar em seu jornal o mesmo Natalício  Norberto, que emergiria em Última Hora não como jornalista, mas como entrevistado: em um longo depoimento, o pivô do "escândalo" praticamente desmentiu o que fora publicado pela Tribuna. Disse que a entrevista tinha sido feita por telefone e que do outro lado da linha poderia estar "um interlocutor desconhecido e não identificado"; que o título que ele fizera fora mudado por Castelo Branco; que a redação do jornal tinha enxertado em seu trabalho informações que não se lembrava de ter escrito. "Não quero continuar encarando meus colegas com sentimento de vergonha ou inferioridade", concluiu. Sua retratação iria parar na manchete de Última Hora do dia seguinte: "Desmascarada pelo próprio repórter a Tribuna da Imprensa".
Quando Chateaubriand retornou ao Brasil, Lacerda se debatia desesperadamente para ampliar a repercussão do filão que descobrira. Além de seu próprio e modesto jornal, ele contava apenas com o apoio de Roberto Marinho, que colocara us microfones da sua Rádio Globo à disposição da campanha contra Wainer, e da voz de meia dúzia de deputados udenistas na Câmara Federal, entre os quais se destacavam o cearense Armando Falcão e o mineiro Bilac Pinto. O sucesso indiscutível de Última Hora vinha se transformando de pequena dor de cabeça em uma ameaça
em potencial aos interesses do dono dos Associados. Um ano depois de lançado no Rio, o jornal punha nas ruas de São Paulo, com igual impacto, uma edição paulista financiada pelo conde Francisco Matarazzo Júnior, que, além de dinheiro vivo, cedeu a Wainer o prédio sob o viaduto Santa Ifigênia para onde tinha pretendido, nos anos 40, transferir a sede da Folha da Manhã. Além de planejar instalar, ainda em 1953, uma estação de rádio, Wainer lançara no Rio e em São Paulo, também com enorme aceitação popular, o semanário ilustrado Flan. Para montar o começo do que sonhava transformar em uma grande rede, ele levantara um total de 64 milhões de cruzeiros (1,6 milhão de dólares de então, aproximadamente 8 milhões de dólares de 1994) - metade tomada como empréstimo ao Banco do Brasil e a outra metade obtida com três grandes capitães de empresas: o banqueiro Walther Moreira Salles e os industriais Ricardo Jafet (que era também presidente do Banco do Brasil) e Euvaldo Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria. Para Chateaubriand, o objetivo a longo prazo de toda aquela movimentação era um só: destruir os Diários Associados. A devastação que a Última Hora produzia sobre o Diário da Noite do Rio era visível por qualquer leigo - e ele sabia onde aquilo podia parar. Era preciso matar no ovo a serpente chamada Samuel Wainer. 
Sua primeira decisão nesse sentido foi destacar o melhor repórter da cadeia, David Nasser, para se juntar em tempo integral a Lacerda e a Armando Falcão (que lhe parecia o deputado mais interessado na destruição de Última Hora). Para Samuel Wainer, a escolha de Chateaubriand não podia ter sido pior. Além de Nasser ser um jornalista experiente, com um faro singular para a investigação de casos intrincados, o dono de Última Hora temia que ele tivesse um motivo a mais para destruí-lo: o ciúme. Afinal, fora Wainer, com a famosa entrevista com Getúlio, que o destronara do papel de principal repórter dos Associados. Depois de atribuir a David Nasser a tarefa de "reduzir a pó tanto Wainer como seu jornal infecto", Chateaubriand deu o golpe de misericórdia: suas duas estações de televisão, no Rio e em São Paulo, deveriam ser colocadas à disposição de Lacerda para que ele popularizasse a campanha contra Wainer.

Para Lacerda, Wainer e os empréstimos feitos pelo Banco do Brasil à Última Hora eram apenas o pretexto de que precisava para atingir seu verdadeiro alvo, Getúlio Vargas. A Chateaubriand importava pouco que o governo tivesse ou não emprestado dinheiro a quem quer que fosse: o que ele não podia era permitir o crescimento incontrolável de um concorrente perigoso, cujos primeiros passos eram idênticos aos que ele dera nos anos 20 e 30. E Samuel Wainer, por sua vez, a avaliar pelo julgamento que fez Chateaubriand nas gravações que deixou para serem transformadas em livro depois de sua morte, parecia farejar quais os objetivos de um e de outro naquela guerra de que ele era a primeira vítima:
[...] Chateaubriand é que foi meu grande adversário, não Carlos Lacerda. Foi Chateaubriand quem trouxe a tv brasileira para o primeiro plano da influência política, ao abri-la para o Lacerda na campanha contra mim e a Última Hora. Lacerda foi um auxiliar acidental, que ficava na cena de frente.
[...] Quando acordava um velho banqueiro como o José Maria Whitaker, de São Paulo, e o levava até o inferno da Amazônia pa ra batizar um avião, no fundo o Chateaubriand estava se vingando. Ele estava provando à mais alta burguesia que era ele quem comandava o espetáculo. [...] Quando ele criou aquela Ordem do Jagunço, eu vi gente da mais alta responsabilidade se expor ao ridículo de botar um chapéu de cangaceiro e tirar uma foto só para sair na primeira página. Chateaubriand fez isso com Winston Churchill, o homem que salvou o mundo! 
[...] Nunca perdoei a revista Veja por chamar-me de "Cidadão Kane". O verdadeiro "Cidadão Kane" foi Assis Chateaubriand.
O que Samuel Wainer aparentemente não sabia, quando começou a fuzilaria contra a Última Hora, é que o pecado de que era acusado (tomar dinheiro do Banco do Brasil para montar ou sustentar meios de comunicação) era algo tão comum na maior parte da imprensa brasileira quanto imprimir e vender jornais. Enquanto a Última Hora era colocada no pelourinho por ter tomado 26 milhões de cruzeiros emprestados ao banco oficial, a Carteira de Crédito Geral do mesmo Banco do Brasil registrava um débito de 50,4 milhões de Roberto Marinho (proprietário do jornal O Globo e de uma estação de rádio), ao passo que os Diários Associados deviam ao Banco do Brasil a soma colossal de 113,6 milhões (quase 3 milhões de dólares da época, ou 14 milhões de dólares de 1994). Nem mesmo a imaculada Tribuna da Imprensa poderia exibir castidade naquele caso: mais modesto, até o jornal de Lacerda tinha pendurado no Banco do Brasil um "papagaio" de valor equivalente a 100 mil dólares da época.
Tratava-se, portanto, de um problema de escala, não de princípios. Lacerda passou por cima destes e, com acesso aos dois canais de televisão, avançou sobre Wainer. O dono da Tribuna nunca tinha usado a televisão em sua vida, mas em uma viagem que fizera aos Estados Unidos dois anos antes ficara fascinado com a capacidade de comunicação do programa de maior sucesso na televisão americana, o "Life is worth living", apresentado pelo bispo-auxiliar de Nova York, Fulton Sheen. Anticomunista ferrenho, o bispo Sheen magnetizava os telespectadores com sua pregação semanal na tevêe fazia isso valendo-se apenas de sua oratória, de um quadro-negro e de alguns gráficos desenhados em cartolinas. Apesar de nervoso e assustado com as luzes refletores e com cãmeras que nunca havia enfrentado antes, Lacerda precisou de poucos dias para se tornar um sucesso de audiência tão grande que Chateaubriand deu ordens para que a direção da Tupi aumentasse os cinco minutos diários iniciais que lhe tinham sido concedidos. Como o bispo Fulton Sheen, colocou um quadro-negro atrás da mesa em que se sentava e ainda inovou, deixando a seu lado um telefone à disposição dos telespectadores que quisessem fazer perguntas. Num dos primeiros dias da campanha no Rio (ele se revezava fazendo apresentações na capital do país e em São Paulo), um telespectador ligou querendo saber o que é que a população tinha a ver com aquela briga comercial entre jornais. Certamente lembrando se das apresentações do bispo Sheen, Lacerda contou em suas memórias que aproveitou aquela pergunta providencial para chegar aonde queria: em Getúlio Vargas:
Eu aí fui para o quadro-negro, tracei assim um sol e uma porção de satélites. Lá embaixo eu fiz um satélite pequenininho e escrevi Última Hora, e disse: "Estou aqui, daqui eu vou passar aqui". O outro satélite era o Banco do Brasil. "Daqui vou passar para aqui", e apontei para o sol e escrevi "Getúlio Vargas". Quer dizer: graficamente os ouvintes tiveram a impressão de que aquilo tinha um alcance muito maior do que pensavam no começo.
Diante da repercussão das aparições de Lacerda, Chateaubriand aumentou para meia hora o tempo de suas apresentações e mandou que aparelhos de televisão fossem instalados em pontos estratégicos do Rio e de São Paulo para que também o homem da rua pudesse acompanhar o lento esquartejamento da Última Hora e de seu dono. Mas o pior ainda estava por vir. No dia 12 de julho de 1953, os mais importantes jornais de Chateaubriand publicavam uma mesma manchete, fruto de uma pista que Da vid Nasser, com a ajuda de Armando Falcão e Carlos Lacerda, vinha perseguindo fazia vários dias: "Wainer não nasceu no Brasil". Nasser conseguira pescar nos arquivos do Ministério da Educação um documento do Colégio Pedro II, do Rio, onde Wainer estudara. No tal papel o irmão mais velho deste, Artur, revelava que o jornalista havia nascido em Edenitz, uma aldeia da Bessarábia - parte da Transilvânia transformada em território daUnião Soviética depois da Segunda Guerra Mundial. Em seu livro póstumo Minha razão de viver, Wainer descreve o abalo que a notícia produziu:
[...] Compreendi de imediato que a manobra teria um impacto fortíssimo. Primeiro porque eu sempre estivera na vanguarda das campanhas nacionalistas – o nacionalismo talvez fosse a principal bandeira da Última Hora, e ficaria difícil sustentar talpostura na condição de estrangeiro. Depois porque a denúncia suscitaria uma complicada questão legal, já que, segundo a Constituição, tanto estrangeiros quanto brasileiros naturalizados não podem ser donos de jornal. Pressenti que a denúncia poderia semear o pânico na redação: e se me tomassem a ÚltimaHora?, certamente se perguntaria o meu pessoal. Preparei-me para a luta consciente de que,desta vez, eu estaria francamente na defensiva. [...] Li o jornal de Chateaubriand. Ali se afirmava, em letras garrafais, que eu não era brasileiro.
Ao ser intimado a depor sobre aquela acusação em um distrito policial situado na zona de meretrício do Rio, e depois de ver o pai ser submetido em São Paulo a humilhações em outra delegacia de polícia, pelas mesmas razões, Samuel sentiu que deixara de contar com o apoio do Palácio do Catete, que até então nunca lhe faltara. Para agravar ainda mais sua situação, seu irmão José, tentando tirá-lo daquela enrascada, conseguiu desenterrar no Ministério do Trabalho um documento que atestava que sua família havia chegado ao Brasil em 1905 (e não em 1915, como afirmava o papel descoberto por Nasser) - oito anos, portanto, antes de seu nascimento. Apesar de aconselhado a guardar a cópia do novo documento para usá-la no momento mais apropriado, Wainer foi pressionado pela redação a publicá-la e o fez ruidosamente, dando-a como manchete de Última Hora do dia seguinte: "Chega ao fim a grande chantagem". Foi uma vitória que só durou 48 horas. Nasser, Lacerda e Falcão foram até o arquivo do Ministério do Trabalho onde a cópia fora feita, localizaram o original e, depois de um exame grafológico sumário, comprovaram que o irmão de Wainer havia rasurado o documento: onde estava escrito 1920 ele escrevera 1905. 
O inferno de Wainer, no entanto, ainda não chegara ao fim. Foi dele a desastrada iniciativa de sugerir au governo que apoiasse a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara Federal para apurar as relações do Banco do Brasil com a imprensa. O jornalista imaginava que a maioria governista permitiria que a CPI, controlada por deputados da situação, investigasse as dívidas que ele suspeitava que também seus algozes tivessem contraído no Banco do Brasil. O resultado da manobra pode ser medido por suas próprias palavras:
Foi meu grande erro. Primeiro eu deveria ter percebido que a maioria governista no Congresso era fictícia - muitos deputados não hesitaram em atraiçoar o presidente. Segundo, mesmo parlamentares francamente getulistas não tinham maior simpatia por mim; faltavam-lhes, portanto, motivos para defender-me. Mais grave ainda, só depois constatei que, quando propus a formação da CPI, Lacerda estava perdendo fôlego. Talvez prosseguisse na campanha, movido por seu ódio inesgotável, mas o certo é que começava a faltar-lhe combustível. Lacerda entendeu imediatamente que a CPI lhe forneceria o palco ideal para o show de falso moralismo que sempre soube encenar.
Acuado por todos os lados e obrigado a transferir o controle da Última Hora para Luís Fernando "Baby" Bocaiúva Cunha, um de seus diretores, Samuel teria sua mais amarga surpresa ao saber que Getúlio dera ordens ao Banco do Brasil para executar toda a dívida do jornal emoito dias. Durante toda a crise, os Associados reforçavam as aparições de Lacerda na televisão com reportagens de Nasser nos jornais do Rio e de São Paulo (refeitas e publicadas com estardalhaço toda semana em O Cruzeiro) e com artigos diários de Chateaubriand, que cresciam em virulência a cada dia que se passava e que batiam insistentemente na mesma tecla: o plano de Samuel Wainer era destruir os Diários Associados a médio prazo, a mando de Getúlio. Quando o dono da Última Hora parecia estar fora de combate, ele escreveu um artigo intitulado "Agora, evacuemos este cadáver", no qual parecia chegar ao paroxismo no ódio a seu ex-repórter:
O que aí resta é uma carniça. Que o sol e os vermes a comam. Morto, Samuel Wainer quer envenenar com o seu cadáver o tecido social da nação. Como? Tentando fazer-se passar por vítima perante as massas. Vamos reduzir o assunto Última Hora ao que ele é: a liquidação de um  trapaceiro bisonho, sem talento para exercer a sua arte. Ele não  merece as proporções garrafais que insistem em atribuir-lhe alguns jornais. O magnífico Carlos Lacerda que entre em merecidas férias por seu maravilhoso labor. E o ministro da Justiça que evacue o cadáver de Wainer.
Assombrado com o que lera em O Jornal, Otto Lara Resende achou que era preciso tentar amansar Chateaubriand. Amigo de Wainer, ele era muito respeitado pelo dono dos Associados, com quem mantinha relações amistosas. Otto procurou-o em seu gabinete no Senado e entrou cuidadosamente no assunto:
- Doutor Assis, eu li seu artigo de hoje no jornal e gostaria de fazer algumas considerações.
Chateaubriand só ouvia, desconfiado. Mesmo sabendo que "quando entrava numa briga ele não tinha qualquer inibição de ordem moral", Otto prosseguia, procurando "mexer no ego dele,
que era enorme, e fazê-lo desistir daquela campanha":
- Doutor Assis, a águia não pode descer ao galinheiro. O senhor tem tantas causas nobres para combater e no entanto está descendo muito, está entrando no campo da mesquinharia. Um general como o senhor não pode usar metralhadora para matar galinha...
Sentado na sua cadeira de senador, ele cortou a frase do interlocutor pela metade:
- Seu Otto, essa sua argumentação é tão cretina quanto o patife que o senhor veio aqui defender. Não toque mais nesse assunto comigo.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

*Chatô enquadra os fabricantes das caixas de fósforos!*

O alto tanto podia ser o vidro plano fabricado por um poderoso truste internacional como poderia nascer da singela observação de uma caixa de fósforos. Anos antes, o Diário da Noite de São Paulo dera em sua última edição uma surpreendente manchete: "Fósforos sobem de 20 para 30 centavos!" . O aumento do preço da caixa de fósforos ter merecido a manchete de um jornal coincidia com uma constatação de Chateaubriand: por alguma razão inexplicável, os fabricantes de fósforos anunciavam em quase toda a imprensa, menos nos Associados. Ele, que não fumava, mandou um contínuo ir ao bar mais próximo e comprar um maço contendo dez caixinhas de fósforos. Desembrulhou-o e leu no rótulo de cada caixinha a mesma informação: "Contém 50 palitos". Abriu a primeira caixa, contou e viu que só havia 47 palitos. Contou os da segunda: 38 palitos; da terceira, 40 palitos; da quarta, 45 palitos. Minutos depois concluía que nenhuma das caixas continha os cinquenta palitos anunciados. Chamou um redator do jornal e mandou comprar dez maços — ou seja, cem caixinhas, e logo depois mais dez e ainda mais dez maços. Convocou todo mundo que estivesse disponível na redação para contar os palitos de cada caixa — do dono dos Associados, passando pelo redator-chefe até contínuos e telefonistas, ficaram todos de cabeça baixa sobre as mesas, contando palitos de fósforos e registrando os totais em pedaços de papel. Já era de madrugada quando, ao final da misteriosa esta­tística, todos se puseram a fazer contas. Só então Chateaubriand anunciou o tortuoso raciocínio que ia por sua cabeça:
Pela nossas contas , são consumidos anualmente em São Paulo 18 bilhões de palitos de fósforos. Se cada caixinha contivesse mesmo os cinquenta palitos que o rótulo anuncia, a indústria estaria vendendo 360 milhões de caixas por ano. Mas como esses larápios colocam, em média, apenas quarenta palitos em cada caixa, na verdade eles vendem pelos mesmos trinta centavos a unidade, 450 milhões de caixas de fósforos por ano.  Ou seja: a indústria que se recusa a anuncia nos Associados está roubando o povo paulista em 90 milhões de fósforos todo ano. Multipliquem isso pelos trinta e verão que são 27 milhões de cruzeiros — dinheiro suficiente para montar um jornal, meus amigos!
No dia seguinte o jornal voltava à carga com a denúncia. No outro dia mais uma reportagem (esta dizia que "uma linha formada pelos palitos de subtraídos ao povo daria para fazer quatro vezes a volta da Terra"). A série prosseguiu até que, como no caso dos vidros planos, foi interrompida  inesperadamente. Semanas depois começavam a aparecer, também nos associados, anúncios dos fabricantes de fósforos. E daquela madrugada alucinada uma marca ficaria gravada nas caixas de fósforos brasileiras: em vez de “cinquenta palitos", elas passaram a anunciar prudentemente em seus rótulos: “45 palitos".
A leitura atenta do Diário da Noite revelaria história certamente semelhante a essa, mas lendo como alvo outro produto. Ainda em fase de implantação, onde acabava de ser lançada, a Coca Cola não anunciava nos Associados. Até que o Diário da Noite passou a divulgar seguidas reportagens contendo "análises bacteriológicas realizadas por respeitados institutos” cujos resultados "condenavam" o re- frigerante. Bastou aparecer os primeiros anúncios de Co-ca CoIa no Diário da Noite para as tais análises sumirem como que por milagre, dando lugar a reportagens que ressaltavam o fato de aquela ser "uma bebida agradável a todos, porque só empregava o puríssimo açúcar brasileiro". Alguma nova encrenca com o departamento de propaganda da Coca Cola pode ter surgido muitos anos depois: em junho de 1957 o Diário da Noite voltaria a repetir o título e a notícia da “contaminação” do produto ("Condenada pelo Instituto Adolfo Lutz — Nociva à saúde da população a Coca Cola"). De novo, no dia seguinte o jornal não tocava mais no assunto.

*O racismo de Chatô :missa rezada por padre preto traz uma urucubaca sem tamanho. *

   Ainda em 1938 ele organizou raid de aparelhos do Rio até a cidade de Campos, no in- terior do estado. Com vários repór- teres cobrindo os preparativos, entre- vistando pilotos, e mais uma equipe recebendo a esquadrilha na cidade fluminense, a viagem renderia páginas e páginas nos jornais e revistas Associados. O sucesso da iniciativa o animaria a repeti-la mais duas vezes, e sempre com um número cada vez maior aviões envolvidos: na segunda, viajaram até a usina de açúcar Tamoio, na cidade paulista de Araraquara, e na terceira foi-se ainda mais longe, a Guatapará, também no interior paulista. Assim como havia repórteres especializados em economia, em política, em esportes, os Associa- dos passaram a ter um setorista de aviação, escolhido pessoalmente pelo dono: o jovem cea- rense Edmar Morel, que ganhara fama meses antes com uma série de reportagens na Amazônia sobre o coronel inglês Percy Fawcett, desaparecido misteriosamente quando investigava a existência da tal civilização branca que a selva brasileira esconderia assunto que havia sido levantado em 1924 por O Jornal.
      A aventura seguinte seria mais arriscada: Chateaubriand planejava organizar uma expedição aérea de nada menos que sessenta aviões do Rio e Porto Seguro, na Bahia, para ali festejarem o aniversário do descobrimento do Brasil. Estaria tudo muito bem se não fosse por um problema: Porto Seguro não tinha aeroporto. Acionado pelo jornalista, Getúlio entusiasmou-se com a viagem, e sessenta dias depois o aeroporto pronto. Com uma escala para reabastecimento em Vitória e outra em Caravelas, no litoral baiano, os aviões por fim desceram em Porto Seguro. A modesta prefeitura local teve de mandar fazer às pressas trinta privadas públicas e arranjar 140 camas com o Exército para acomodar os pilotos, radiotelegrafistas e os mecânicos. Logo que os aparelhos pousaram, o vigário da cidade, um negro anunciou que havia preparado uma surpresa para Chateaubriand e os mais de cem pilotos e acom- panhantes que tinham feito parte do raid: iria oficiar uma missa no mesmo local em que frei Henrique de Coimbra havia rezado a primeira missa Brasileira, em maio de 1500. Ao ouvir aquilo, Chateaubriand chamou, Edmar Morel a um canto:
- Seu Morel, demita esse preto da minha festa. Um preto rezar a nossa missa? De modo algum! Dê um jeito de chamar com urgência o bispo de Ilhéus, que é ariano. Em missa de branco eu atuo até como coroinha, Seu Morel, mas missa rezada por padre preto vai nos trazer uma urucubaca sem tamanho.
Veja também:

 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O peido de Chateaubriand!

 O Brasil fervilhava às vésperas do Golpe Militar, as vivandeiras da direita rondavam os quartéis conspirando os quartéis. Em 13 de março de 1964, houve o histórico comício da Central, ou Comício das Reformas, na cidade do Rio de Janeiro, na Praça da República, situada em frente à Estação da Central do Brasil.
  O governador Magalhães Pinto era um dos chefes civis da conspiração contra o governo Goulart e nesta condição fui à procura de Assis Chateaubriand, Chatô, para escutar sua opinião sobre um manifesto à nação assinado por todos os governadores, na verdade, um contundente libelo contra o governo Goulart e conclamação ao golpe militar que se avizinhava.
Veja o histriônico resultado da Consulta do  Magalhães Pinto à Chateaubriand, conforme relata Fernando Morais na sua obra "Chatô, o Rei do Brasil":

"Dias depois do comício, o governador Magalhães Pinto apareceu na Casa Amarela levando nas mãos a cópia de um manifesto à nação que pretendia que fosse assinado por todos os governadores contra o governo - articulação que, naturalmente, não chegou a progredir. Em uma reunião solene — da qual participava, entre outros, a pudica Lily Whitaker Gondim presidente de O Cruzeiro —, Magalhães contou que fizera contatos com os governadores Nei Braga, do Paraná, Petrônio Portela, do Piauí, Seixas Dória de Sergipe, e até com Miguel Arraes, de Pernambuco. Antes de avançar com seu plano, o governador mineiro queria ouvir a opinião do Chateaubriand sobre os termos do documento. Alguém leu o manifesto e Magalhães quis saber o que Chateaubriand achava dele. Com a voz quase inaudível de sempre, o jornalista desculpou-se, dizendo que estava afônico, com pouco fôlego e pediu a um enfermeiro que fizesse pressão sobre seu esôfago para que a voz saísse melhor. Com um sorriso maroto nos lábios, em vez de qualquer palavra ele soltou um sonoro peido, e, diante do olhar de todos declarou, risonho:

— Essa é a única resposta que posso dar a um manifesto sinatura de Seixas Dória e de Miguel Arraes."