A quartelada militar consolidada... Começa a fase das ambições
A grande confusão mal começara. Mazzilli era um presidente sem fu-turo e Costa e Silva, chefe revolucionário sem passado. Tomara o Mi-nistério da Guerra com o propósito de
empalmar o poder sem aprofun-dar rachaduras no meio militar. En-quanto as rádios e televisões anun-ciavam que houve mente tivesse ocorrido. A partir da manhã de 1° de abril a
conduta audaciosa de Costa e Silva encontra poucos paralelos nas quarte-ladas nacionais. Misturou habilidade e intolerância,
tendo sempre como objetivo a construção de uma base de poder nos quartéis. Se
em alguns momentos sua conduta pareceu ridícula, não foi dele a culpa. Pelo contrário, o general teve a
clarividência de tomar atitudes extravagantes, numa situação que, por si,
extravagâncias exigia.
Costa e Silva despachou a todas as unidades militares um radiograma, informando que se sagrara dono da
“coisa toda”:
O Exmo. Sr. General Armando de Moraes Âncora, nomeado hoje ministro da
Guerra interino, deixou este cargo em cerimônia que contou com a presença de
todos os generais. Dada a situação de fato criada com os últimos
acontecimentos, comunico que, em vir-tude de
ser o membro do Alto-Comando mais antigo, assumi na mesma cerimônia o comando
do Exército Nacional.
General-de-Exército Arthur da Costa e Silva
Comandante do Exército Nacional.
O Brasil tomava conhecimento da existência do general Arthur da Costa e
Silva através de um documento prodigioso. Afora a data — 1° de abril — o
radiograma não continha uma única afirmação verdadeira. A saber:
1.A nomeação do general Âncora para
ministro da Guerra era uma fantasia. Só uma pessoa podia nomeá-lo, precisamente
aquela que estava sendo deposta: João Goulart. (A mentira destinava-se a
sugerir aos quartéis que a mudança tinha sido feita de acordo com o protocolo,
a disciplina e a norma administrativa.)
2.Âncora não deixou o cargo durante uma
“cerimônia”, nem a ela compareceram “todos os generais”. Não compareceram
sequer os dois comandantes da revolta. Mourão Filho e Muricy ouviram a notícia
na serra, pelo rádio de seus carros. Mourão suspeitava que desejassem fritá-lo
e descia “preocupadíssimo em chegar na Guanabara antes do Kruel”. Quando ouviu que Costa e Silva
assumira, teve uma crise de angina e brigou com a mulher. (A mentira destinava-se a fornecer às
guarnições distantes a idéia de que no quartel-general reinavam a paz e a unidade, sem vencedores nem vencidos.)
3.A expressão “membro do Alto-Comando
mais antigo” carece de sentido. Como o Alto-Comando é formado pelos generais de
quatro estrelas em função no Exército, integrá-lo significava, por definição,
merecer alguma confiança do presidente da República. Costa e Silva era um
general de quatro estrelas com assento no Alto-Comando por decisão do
presidente João Gou-lart. Já o general Cordeiro de Farias, mais antigo que Costa e Silva e
Jair, era um quatro-estrelas sem comissão e, portanto, sem assento no
Alto-Comando, igualmente por decisão do pre-sidente, que, por todos os motivos, não
confiava nele. (A mentira destinava-se a dar a idéia de que Costa e Silva ocupava o
ministério pelo imperativo de uma qualificação hierárquica.)
4.Costa e Silva referiu-se a uma
“situação de fato criada com os últimos acontecimentos” Não definiu nem
qualificou a situação nem os acontecimentos. (A ambiguidade destinava-se a manter aberto o
portão aos indecisos. Um oficial outrora ligado ao “dispositivo” poderia se
constranger em aderir a uma revolução que buscava a deposição do presidente,
mas ficaria mais a gos to se aceitasse uma genérica “situação
de fato” cria da por indefinidos “últimos acontecimentos”.)
5.O telex começa dizendo que um
“ministro interino” — Âncora — deixara seu cargo e termina informando que Costa
e Silva assumira o comando do Exército nacional. Ou seja, dentro do regulamento
e de acordo com o cerimonial, recebera um cargo, mas assumira outro. Se isso
fosse pouco, o cargo de coman-dante do Exército simplesmente não existia. (Ao atribuir-se um cargo
inexistente, Costa e Silva fabricava a percepção de que dele não podia ser
demitido.)
O Brasil tomava conhecimento da existência do general Arthur da Costa e
Silva através de um documento prodigioso. Afora a data — 1° de abril — o
radiograma não continha uma única afirmação verdadeira. A saber:
Na
divisão do butim militar, Costa e Silva assenhoreou-se do I Exército, nomeando
para comandá-lo o general-de-divisão Octacílio Terra Ururahy, o Gordão. Para Mourão Filho, a
notícia não fazia sentido. Ele começara o levante e agora seria subordinado de
um três-estrelas que, além de estar sem comissão, nada tivera a ver com a
revolta. Chegou ao quartel-general às 2h30 do dia 2 de abril, e disseram-lhe
que o ministro estava dormindo. Mandou acordá-lo e reclamou, dizendo que, pelo
regulamento, o lugar de Ururahy lhe pertencia. De fato, em caso de vacância do comando, ele deveria
ocupá-lo, por ser o general mais antigo em serviço no I Exército. Costa e Silva
explicou-se: “Foi tudo resolvido na base da hierar-quia.
Assumi o comando por ser o mais antigo aqui no Rio e o Ururahy é o
general-de-divisão mais antigo. Eu quis colocar o Gordão como mola, para-choque
entre mim e a tropa do I Exército. Ele não veio comandar nada. Não se
preocupe, velho, isto vai dar certo. [...]”.
No dia seguinte o ministro teve uma
i-deia. Sugeriu-lhe
que assumisse a presi-dência da
Petrobrás em nome do comando revolucionário.
Mourão gostou.
Na Escola
de Comando e Estado-Maior, o tenente-coronel Newton Cruz surpreendeu-se ao ver
um oficial controlando a entrada do prédio . Tinha nas
mãos duas
tabelas e marcava
um pauzinho para quem entrava, outro para quem saía. Perguntou-lhe
o que era aquilo e soube que eram ordens do coro-nel João
Baptista Figueiredo, encarregado de distribuir missões aos voluntários da nova
ordem. Foi saber de Figueiredo por que razão mandara
o oficial riscar pauzinhos. “Ele veio aqui pedir uma mis-são. Eu
não tinha nada para mandar ele fazer e disse-lhe que fizes-se precisamente
isso. Para que ele faça alguma coisa.” O
levante transbordava em apoios.
Na distribuição dos grandes
comandos, Ade-mar de
Queiroz obtivera para o general Orlando Geisel a 1ª Divisão de Infantaria. Era
a Vila Mili-tar,
unidade mais poderosa do I Exército. Uma se-mana antes
o ministro Jair Dantas Ribeiro conse-guira que
Jango assinasse a promoção de Orlando a general-de-divisão. O irmão, Ernesto,
ficara com o comando da Artilharia de Costa, uma posição turística.
Rejeitou-o. Manteve-se no círculo próximo
a Castello, em cujo gabinete a movimentação era
tamanha que alguns conciliábulos ocorriam em seu es paçoso
banheiro, onde se puseram cadeiras.
O chefe do Estado-Maior emergia como o mais forte candidato a presidente. Estava suficientemente ligado aos conspiradores ci-vis para ter a confiança de Lacerda,
em quem ele e a mulher votaram para vereador, deputado e governador.
Somava ao seu prestígio militar um verniz legalista que acalmava o juscelinismo. Atendia a todos os que desejavam
um general esquentando a cadeira até a eleição do novo presidente, em outubro
do ano seguinte. Oposição real ao seu nome só houve mesmo a de Costa e Silva. O
“comandante do Exército” argumentara que era impossível haver uma só
candidatura militar e que a disputa levaria à divisão das Forças Armadas.
Depois, sustentara que a presença de um general no palácio reeditaria a
rivalidade havida entre os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto no
amanhecer da República. Escalava-se para o papel de Floriano.
Até as primeiras horas da manhã do dia 2 o poder militar de Costa e Silva era uma intenção bem encaminhada, porém ainda não comprovada. Ele se intitulava comandante do Exército nacional, mas nunca o Exército tivera tantos comandantes. Castello indicava generais, Kruel candidatava-se à condição de vice-rei do Sul, e a Escola de Estado-Maior preparava leis. A surpreendente vitória do levante, bem como a cautela para não dividir os quartéis entre vencedores e vencidos, potencializava a balbúrdia típica dos golpes.
Nessa hora o 1° Grupo de Obuses 105, na Vila Militar, ficou com dois comandantes. Orlando Geisel mantivera o titular e devolvera ao quartel-general o tenente-coronel enviado pelo gabinete do ministro. Não era o primeiro que rebarbava. Assim, antes de chegar à antinomia Deodoro x Floriano, Costa e Silva teve de resolver outro conflito, também antigo: o do ministro com o comandante da Vila. O regime de 1964 ainda não completara um dia. Não havia sequer governo, mas Costa e Silva impôs-se com uma canetada. Demitiu Orlando Geisel.
A unidade militar proclamada sobre os escombros do governo Goulart era tão falsa quanto aquela que Golbery oferecera no texto de seu manifesto na manhã de 1° de abril. Contudo, se os generais podiam divergir a respeito de muitas coisas, numa estavam de acordo: dispunham-se a utilizar a força contra o que restava do governo civil. Queriam isso não só porque achavam necessário o expurgo — “limpeza da casa”, como diziam — mas também porque ele se transformaria imediatamente em fonte de poder e legitimidade burocrática.
Nenhum general janguista dormiu preso nas horas seguintes à vitória do levante. Pelo contrário, na noite de 1° de abril Orlando Geisel libertou seu colega Almeida de Moraes, detido na Escola Superior de Guerra. Quando o coronel João Paulo Burnier desembarcou no 11° andar do Ministério da Aeronáutica vestindo botas, macacão de vôo, capacete de aço e trazendo granadas na cintura e submetralhadora na mão, os brigadeiros e coronéis que estavam no gabinete do ministro riram. Costa e Silva chegou a visitar o ex-ministro Jair Dantas Ribeiro no dia 4, caso único de cortesia para com um ministro deposto. As tropas de Mourão Filho desceram a serra sem um só tiro, sequer um protesto.
João Goulart caiu no dia 1° de abril. O regime de 1946, nos dias seguintes. Por conta da radicalização que levara o conflito para fora do círculo estrito das cúpulas política e militar, a vitória não podia extinguir-se com a deposição do presidente. Fosse qual fosse o lado vitorioso, ao seu triunfo corresponderia um expurgo político, militar e administrativo. O levante se apresentara como um movimento em defesa da ordem constitucional, mas a essência dos acontecimentos negava-lhe esse caminho. Seria impossível imaginar João Goulart no Uruguai e seu cunhado Leonel Brizola na Câmara. Da mesma forma que teria sido inconcebível, na hipótese da derrota de Mourão, a permanência do governador Magalhães Pinto no palácio da Liberdade. A questão da pureza constitucional nem sequer se colocava. Alguns comandantes militares, agindo por própria conta, já haviam aprisionado os governadores Miguel Arraes, de Pernambuco, e Seixas Dória, de Sergipe.
Na sua edição de 2 de abril a Tribuna da Imprensa pedia a “cassação dos direitos políticos” do comando civil janguista. Foram inúmeras as propostas de demolição das franquias constitucionais. Uma das primeiras foi mandada a Costa e Silva pelo empresário Antonio Gallotti, presidente da Light, empresa de capital canadense concessionária da produção e distribuição de energia elétrica no Rio de Janeiro e em São Paulo. Golbery guardou consigo uma outra, intitulada Decreto Institucional. Previa a suspensão das garantias constitucionais por seis meses, a cassação dos direitos políticos e o banimento de Jango, de três governadores e de uma quantidade indefinida de deputados e senadores. Uma terceira proposta vinha do jornalista Julio de Mesquita Filho, proprietário d’O Estado de S. Paulo. Redigida com a colaboração do advogado Vicente Ráo, catedrático de Direito Civil da Universidade de São Paulo e ministro da Justiça no Estado Novo, foi a primeira a chamar-se Ato Institucional. Sugeria a dissolução do Senado, Câmara e assembléias legislativas, anulava o mandato dos governadores e prefeitos, suspendia o habeas corpus e pressupunha que seria o primeiro de uma série. Um quarto projeto, chama do Ato Operacional Revolucionário, cujo texto é desconhecido, foi farejado pela CIA no dia 5 de abril. Previa o expurgo do Congresso como recurso extremo, capaz de evitar o seu fechamento. Conhece-se também um manuscrito, produzido no Ministério da Aeronáutica, em que, além dos expurgos civis, propunha-se o banimento de militares comunistas.
Oito notáveis do Congresso reuniram-se em Brasília para mais um projeto. Entre eles estava a fina flor do liberalismo do regime de 1946. Chegaram a uma fórmula pela qual os expoentes da ordem deposta perderiam os direitos políticos por quinze anos. A idéia de mutilar o corpo político do país era defendida até mesmo pelo cardeal do Rio de Janeiro, d. Jaime de Barros Câmara, para quem “punir os que erram é uma obra de misericórdia”. Cada um dos participantes da reunião de Brasília sangrou um pouco de sua biografia libertária. O gaúcho Daniel Krieger, girondino exaltado e valente; o mineiro Adaucto Lúcio Cardoso, audaz e elegante, signatário do Manifesto dos mineiros contra a ditadura de Vargas; Ulysses Guimarães, ex-ministro de Jango. Tentavam fugir avançando, pois como o Congresso não se dispunha a cassar os mandatos da bancada esquerdista, firmara-se um acordo tácito segundo o qual a violência viria de fora. A manobra falhou grosseiramente, pois na noite do dia 8, quando um emissário levou o texto a Costa e Silva, ele recusou a ajuda. Já tinha munição.
Desde o início da tarde de terça-feira, 7 de abril, o jurista Francisco Campos estava no gabinete do general. Autor da Carta de 1937, último instrumento ditatorial da República brasileira, Chico Ciência era um mineiro miúdo, autoritário, brilhante e extrovertido. Chegou ao Ministério da Guerra acompanhado pelo ex-colaborador e amigo Carlos Medeiros Silva, que, em 1937, datilografara e revira em segredo toda a Constituição. Medeiros aprontara no domingo, dia 5, um Ato Constitucional Provisório que previa uma fornada de cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos pelo “prazo máximo” de cinco anos. Castello e Costa e Silva receberam cópias do Ato Provisório entre a madrugada e a manhã de segunda-feira, dia 6. Reunido com Costa e Silva e um grupo de generais, Francisco Campos captou neles uma vontade de praticar a violência política, inibida pelo escrúpulo de atropelar a Constituição. Agitado, andando de um general para outro, atirou: “Os senhores estão perplexos diante do nada!”. E deu uma aula sobre a legalidade do poder revolucionário. Era o que eles precisavam ouvir. Perguntaram-lhe do que precisava para redigir uma proclamação: “Papel e máquina de escrever”, respondeu. Mostraram-lhe a proposta mandada por Gallotti, e ele a julgou “obra de amanuense”.
O Ato Constitucional Provisório de Carlos Medeiros, ligeiramente modificado, transformou-se num Ato Institucional com onze artigos que expandia os poderes do Executivo, limitava os do Congresso e do judiciário, e dava ao presidente sessenta dias de poder para cassar mandatos e cancelar direitos políticos por dez anos, bem como seis meses para demitir funcionários públicos civis e militares. Campos deu-lhe a introdução, verdadeiro cérebro, articulando o argumento da subversão jacobina que o quartel-general buscava fazia vários dias: “A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela Revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte”.
Como escreveu dias depois o cronista Rubem Braga, todas as vezes que se acendiam as luzes do professor Chico Ciência, dava-se um curto-circuito nas instituições republicanas.
***
No dia 11 de abril, depois de um conciliábulo de governadores e generais destinado a evitar a coroação de Costa e Silva, o general Humberto de Alencar Castelo foi eleito presidente da República pleo Congresso Nacional, como mandava a Constituição. Prometeu “entregar, ao iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo em eleições livres, uma nação coesa”. Em 1967 entregou uma nação dividida a um sucessor eleito por 295 pessoas.
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