O
preto Salviano era um monstro
como cavador de cacimbão. Toda a cidade sabia disso. Aceitava a fama do negro sem discussão. Era mestre de tampa e rampa. Professor que tinha discípulos. E com isso, ganhava dinheiro bastante para viver e sustentar a família – d. Severina e oito moleques taludos.
como cavador de cacimbão. Toda a cidade sabia disso. Aceitava a fama do negro sem discussão. Era mestre de tampa e rampa. Professor que tinha discípulos. E com isso, ganhava dinheiro bastante para viver e sustentar a família – d. Severina e oito moleques taludos.
Salviano
cavava cacimbão, tomando cana, fazendo poesia e contando história e contando
histórias. Histórias de briga, de samba, de valentia, de cangaceiros, de assassinatos
e lutas conta a polícia.
Era
um gozo ver aquela lapa de negro, grandalhão e musculoso, nos dias de feira –
já no fim – no meio do comércio, escachado, de chapéu caído para trás, olhos
avermelhados, risonho, gingando e aos pinotes, repetindo incessantemente:
-
O bom daqui sou eu, Salviano, o Pai dos Homens!
O
povo fazia roda e ria com aquela esculhambação.
***
Quando
eu voltava das audiências forenses, de saco cheio de inquirição de testemunhas
mentirosas, de “viveiro”, na defesa de direitos perdidos, ficava, de cuecas,
desopilando o fígado ingurgitado, na beira do cacimbão, ouvindo as bravatas do
negro. Gozava como menino, escutando histórias de mil-e-uma-noites. Atiçava e
dava corda nele e aí era que o preto botava as unhas de fora. Zé Bonitinho e
Chico Pirão, companheiros e ajudantes dele, davam testemunhos dos seus
sucessos, mostrando lá do fundo do buraco, suas caras cínicas:
-
Foi assim mesmo. A gente estava lá...
-
O doutor não acredita, mas foi. Só se vendo.
O
negro contava mais um caso:
-
Um dia entrei na bodega de seu Emídio Cunha, já bebaço. Dia de feira. Estava já
escurecendo. Havia uns quatros sujeitos dentro da bodega. Uns conhecidos e
amigos do copo. Quanto um bicho pulou em cima de meus pés e dei um salto de
lado, assustado que nem um gato. Ai eu vi um cururu do tamanho de boi. Pois num
é que eu fiquei com raiva do baita e mandei botar um oito de cana. Peguei o
peste de jeito e tomei uma lapada, tirando o gosto com a perna do bichinho... –
e ria um quá- quá- quá ajumentado.
Eu
reclamei:
-
Está mentindo negro.
-
Mentindo, não. Pergunte a seu Emídio.
Queimei minha boca toda. Adoeci e fiquei inchado. Foi uma inchação
danada. Quase morro. Quem me tratou foi doutor Otacílio Jurema. Para nunca
mais. Cachaça é o diabo. Vocês aí sabem do caso – o negro pedia prova aos
companheiros de trabalho. Zé Bonitinho me espiou sossegadamente:
-
Foi isso mesmo. Você quase estica as canelas. Ainda andou conversando com o
diabo na porta do inferno... Num foi Pirão?
-
Eu fui o comprador dos remédios. Sei de tudo como foi. Eu fiz até guarda ao
negro velho. Todo mundo aqui sabe dessa história – confirmou Chico Pirão,
cavando a piçarra, sem me olhar.
Ri,
incrédulo. O negro era um presepeiro de marca.
***
Eu tinha herdado, de minha avó, um casa na
praça da Matriz. Um casa dos tempos coloniais, malassombrada e cheia de botija. Eu era um ateu, mas comida
um medo dando, inconsciente, pré-histórico, de almas. Daí nasceu a ideia de
modernizar o casarão velho, para enxotar os espíritos reacionários,
desbotijando também o dinheiro. Rasguei áreas onde havia tenebroso e imbecil
corredor, destruindo-o. fiz nova divisão interna. Melhorei tudo e até coloquei
um portão de ferro na entrada. Na primeira sala, instalei o meu escritório. Do
lado de fora preguei a placa esmaltada de doutor-advogado. Assim fui gastando o
dinheiro da minha magra profissão. E como não restasse mais o que fazer,
resolvi abrir, no muro, bem perto da cozinha, um cacimbão. Não sei mesmo para
que me meti com aquilo. Era uma besteira, pois não resolveria o problema de
abastecimento d’água. Os cacimbões do centro da cidade somente davam água
salobra e ruim. Foi pura maluquice de um bacharel folgazão e meio desocupado. E
por aí veio uma mudança total no rumo da minha vida. Terminei querendo salvar o
Brasil. Foi danado. Só contando o caso.
***
Mandei
um recado para o mestre Salviano. O negro chegou todo compenetrado. Examinou o
chão, apalpando-o, como se estivesse galinhando uma mulher. Depois ciscou como
praqui e pracolá. Escavacou um pedaço. Pôs o ouvido na terra, escutando-a, em
de cócoras, deu o diagnóstico profissional.
-
Te uma camada de barro vermelho de três palmos; depois tem uma camada de pedra
mole, piçarra, de quatro ou cinco palmos; depois vem outra de pedra-rocha,
preta-azulada, dura que nem o diabo, que só um tiro dará um jeito. E depois
quando a gente tiver cavado uns vinte e dois palmos, ficando rente com a água do
açude Velho, aí rebenta a veia d’água salobra. Com os tempos, a água vai
ficando melhor e mais doce. Conheço o chão de Cajazeira que nem a negra lá de
casa. Já cavei aqui mais de trinta cacimbões. Eu sei abrir esses buracos e riu,
mostrando a dentadura sadia, forte, num rosto anguloso, pintado de ar vaidoso
de perito no ofício.
-
Olhe, negro, quero um cacimbão de boca quadrada, de ois metros por dois.
Compreendeu?
Salviano
arregalou os olhos pretos e espantados:
-
Quadrado?! Vote! Nunca fiz desse jeito. Todos são redondos. Quadrado num dá
certo. O cacimbão fica com as beiradas em força e desaba as barreiras. É um
perigo. Este doutor é cheio de novidades. Ora, quem já viu disso...
-
Mas você acabou de me dizer que o chão tem oito palmos de barro e piçarra; e
que é de pedra-rocha. Pois bem, quando se chegar neste ponto, você fará o
alargamento para assentar as fiadas de tijolos, montadas na pedra-rocha, e aí
vai fazer o enquadramento da boca, e colocará as traves. Entendeu, negro velho?
-
Já sei o que o senhor quer. Vá lá. A gente faz até economia de tijolo de
revestimento, que no cacimbões redondos começa desde o fundo até em cima. Vai
ficar feio como diabo. Vôte!
O
preto ficou ainda a duvidar do meu plano, cismando como se quisesse dizer –
amarro o burro no pescoço do nodo. Era o jeito. O doutro era mesmo o Timóteo da família. Um cancão de Fogo.
***
A
história do cacimbão quadrado tomou conta da cidade. Os entendidos e os
coronéis comentavam o assunto, fazendo pilhérias e criticando meu projeto já em
execução:
-
O doutor Rolim está abrindo um cacimbão quadrado. Era só o que faltava
inventar. Quem já viu uma coisa dessa? É isso – esses meninos vão estuar e
quando voltam, vem com ideias adoidadas. Falam dos padres, dos santos, de Deus
e de tudo. Nada presta na boca deles. Não sei porque se bota filho pra estudar.
Voltam de cabeça virada. Aquilo vai dar me cabeça de gente.
-
Já o filho do compadre Jurema dá desgosto todos os dias. Inventou agora um tal
de cabaré no rabo da gata. Junta-se
com os cachaceiros da cidade, e haja farra de noite inteira; terminam no açude
Grande, no banho, com o mulherio. A terrinha do padre-mestre Rolim está
perdida. É uma praga. Taí em que deus os estudos.
As
mulheres dos coronéis martelavam:
-
Esses bichos não querem se casar pra viver de escândalos. São uns perdidos! Agora lá vem aquele maluco com um negócio de
cacimbão quadrado. Quem já viu disso é só prá ficar com o nome na rua... Ele
tem o ar de doido. Você já reparou?
Os
padres também aproveitavam a onda. Nos sermões, aos domingos, metiam a língua
martelando:
-
Doutores amaldiçoados que só cuidam da corrução do povo. A nossa cidade,
abençoada e piedosa, perdeu o seu respeito. Meia dúzia de doutores desocupados
inventou cabarés, bebedeiras, farras, maçonaria, espiritismo, comunismo e outra
desgraças que estão corrompendo os nossos costumes de cidade cristã. Mas nós, os vigários de Cristo, estamos
alertados para lutar contra os criadores de novidades
na terra do Padre Rolim, e até mesmo contra os inventores dos cacimbões quadrados, que provocam risos
na cidade. Inventaram que Cajazeiras é do povo, traindo Mãe Aninha e os
Rollins...
Eu
gozava com a implicância dos reacionários. Meu cacimbão era um símbolo contra a
rotina. Contra Cajazeiras de cacimbões redondos. Eu era de raça teimosa,
cabeçuda e mangofeira.
Fiquei
sozinho contra a cidade.
***
O
preto Salviano, por pagode, deixa o porão do muro aberto, bem escancarado, para
a entrada dos incréus, que ali iam bancar S.
Tomé, vendo e pegando na terra do cacimbão quadrado. Eu me ria com o pasmo
de suas caras. Era bom e gozado.
Os
quatros primeiros palmos da escavação, foram pagos na base de cinco mil réis,
cada um, na piçarra, de sete; e o restante na base de doze. Era demais. Parecia
obra do Governo.
Eu
sentia prazer em ficar na boca do cacimbão observando o rasgamento de minha
terra natal. Vendo as camadas formadores do seu ventre geológico, de barro
vermelho, de pedra-mole, esverdeada, e depois, rocha-azulada, e a direção das
veias de massapê, da infiltração da água no sub-solo (sic). Era bonito. Era gostoso.
O
montão de terra crescia todos os dias e a meninada da rua do Cisco brincava em
cima, imitando os bandidos de cinema.
Eu
passava, horas e mais horas, embebido, espiando o trabalho, dos três homens,
que se enterravam no chão, conversando, gargalhando, contando casos, com a
imaginação estimulada pela cana dos alambiques do Ceará o negro Salviano,
foi-não-foi, parava de trabalhar, olhando para cima, repisando:
-
Pois é, doutor, o cacimbão vai que vai danado, embora o povo esculhambe e meta
o pau.... Ó povo besta!
-
O povo é idiota, não sabe o que diz – respondia com chavão, zombando dos
rotineiros. Dos reacionários.
-
É mesmo – confirmava o negro, já enterrado, até o pescoço nas entranhas da
terra e lavado de suor. E aí contava mais um caso de sua vida aventureira.
-
em mil novecentos e trinta e dois, eu resolvi não trabalhar, para me vingar do
prefeito Hildebrando, porque, um dia fui pedir serviço na Prefeitura e ele me
disse que não tinha. Que estava esperando ordens do Governo. A seca estava danada, passando a língua nos
beiços, e eu aí disse que não podia esperar mais. Não tinha o que comer. Pois
sabe o que ele disse:
-
Mandou apertar o cinturão – respondi.
-
Nada. Disse assim: “então morra”. Saí de lá com a gota serena. Passei na ponte
do Colégio, pisando em brasas de forja.
Quando fui subir a ladeira do Alto Cabelão, pedi a Deus que me ensinasse
um jeito para resolver a minha situação. Rezei um Padre-Nosso bem apertado e
fiquei mais calmo. Demorei mais as passadas, olhando o céu, atrá de um sinal,
quando avistei uma urubuzada, fazendo roda, com uns descendo e outros subindo.
O céu pretinho!
-
Quer dizer que você estava urubusservando
os colegas... – E o negro ficou com a cara mexendo, saindo-se:
-
Isso mesmo. Aí me botei para o lugar da carniça. Lá encontrei um garrote morto.
Me cheguei perto e tangi os urubus. Eram como diabo. Examinei o ferro. Era do
coronel Sabino. Uma coisa me disse que podia tirar um pedaço daquela carne em
nome da catinga. E eu mais depressa puxei a faca e cortei um pedaço do coxão do
garrote. Trouxe prá casa, na rua do Pau Não Cessa. Minha mulher ficou zangada
com os meu planos e com a catinga da carne. Mas eu não me incomodei. Mandei
chamar os meus dois cunhados. Expliquei o negócio todo. A gente iria pra o
Ceará, entrando pela cidade do Baixio. Eu com o pedaço de carne podre amarrado
na perna, coberto pela calça, caxingando, escorado numa vara, feito um aleijado
de ferida braba. Meus cunhados ficavam nas pontas das ruas, esperando a
“colheita”, com a panela no fogo, debaixo dos paus foi o melhor do chão. Tirei
comida como o diabo. Quando era no fim
da semana, um deles ia deixar a “feira” da família aqui. Foi bonzão. Chega a
gente até deu prá engordar. O hoem é bicho astuciosmo, seu doutor. É rei mesmo.
-
Está mentindo, negro de uma figa!
-
Juro por tudo que é sagrado. Me vinguei do Prefeito e do Governo. Passei a seca
luxando, que em gente rica. Percorri umas quinze cidades do Ceará. Quando eu
entrava numa loja com a minha catinga,
o dono, sem mais conversa, ia logo despejando no meu saco, feijão, farinha,
carne, tudo. Às vezes me dava um dinheirinho. Na casa dos grandes a coisa era
melhor. Quando a catinga entra de porta a dentro, aí não prestava não. Corria
tudo...
-
E essa carne do garrote durou a seca toda?
-
Nada. Quando a carne ia secando, eu molhava. Quando não prestava mais, eu
arrumava carne no açougue e botava para apodrecer. Quando ele estava bem cheirosa, eu sapecava catinga nas
ventas dos coronéis e aí a coisa não prestava não... Tempo bom! Eu sou mesmo o
mestre Salviano, o Pai dos Homens!
***
Agora
o cacimbão estava na pedra-rocha, bem escura. O negro Salviano cavoucava-a ,
com buraco de dois palmos, preparando os tiros com meio cartucho de pólvora. Eu
recomendava:
-
Bote estupim com quatro palmos, prá dar tempo a vocês saírem sem perigo da
explosão imediata. Cuidado com essa
cana...
-
O doutor quer ensinar padre-nosso a vigário. Só o que faltava eu também sou
doutor em cacimbão, doutor José Salviano da Silva. E num sou sacana não, pois
não procuro macho prá mãe... minha!
Os
tiros estrondavam dentro da cidade. As casas estremeciam. Salviano botava um couro de boi na boca do
cacimbão, para impedir a subida dos estilhaços. De manhã, cavava a buraqueira.
De tarde, os tiros. É o cacimbão ia se aprofundando. Já media uns vintes
palmos, revendo água azulzinha, sob a marreta da turma de negros. Os destroços
formavam um morro da altura dos muros.
Estava
numa audiência, quando chegou Zé Bonitinho, vexado, informando que Salviano
havia botado um tiro maior, de um cartucho de pólvora. Que um grande estilhaço
tinha caído no teto da igreja, rebentando-o. que a pedra tinha caído nos pés da
padroeira, Nossa Senhora da Piedade. E que o vigário estava lá, revoltado e
culpando-me. Que a coisa estava preta. Ia haver barulho.
Aporrinhado,
saí. Encontrei uma multidão na frente de minha casa. O vigário insultava o
negro, mostrando a pedra profana. Todos estavam contra o preto. Fui chegando e
o vigário partiu pra cima de mim feito um cavalo do cão, dizendo-me:
-
Um absurdo este negro, embriagado, quase acaba com a Igreja. É um
irresponsável. Você precisa tomar providências senão vou ao delegado. Um negro
safado desse, cheio de cana...
-
Isso é um mero acidente, como outro qualquer, seu vigário. O senhor quer
escandalizar... fazer espetáculo.
-
Escandalizar, não. Quem escandaliza a cidade é o senhor com as novidades... Os doutores!... O povo
sabe! ...
-
Já sei. Nós somos os culpados de tudo que acontece aqui contra a vontade de
Deus w s Igreja. Até da seca...
O
padre me botou os olhos fanáticos, claros, e pisando duro, de cabeça
alevantada, deu o fora o negro Salviano, de marreta me punho, recostado na
parede, guardado pelos companheiros, esperava os acontecimentos. E me resumiu o fato:
-
Não sei de nada. O tiro foi demais. A pedra subiu e foi cair na Igreja. Nossa
Senhora não sofreu nada nem reclamou. O vigário é que veio com besteira.
Consertou aquilo, ora pronto. Não houve nada. Fica tudo na boa. E aquele urubu
pode falar da gente!
-
Você está bebendo demais, negro.
-
O serviço é duro, seu doutor. Só com cachaça. Aquele padre quer botar catinga
na gente. Era só o que faltava. Vôte! A coisa não vai prestar... – e cuspiu
bala na parede, gingando, e dizendo que era o “o pai dos homens”.
***
O
trabalho do cacimbão fiou parado uns dias, a pedido do meu pai. Paguei o
conserto do trabalho da Igreja depois, mandei o negro continuar o serviço da
escavação. As águas estavam perto. O cacimbão já tinha vinte e oito palmos de
profundidade. Recomeçaram os tiros, comis dois couros de boi servindo de
tampão. Os vizinhos andavam assombrados.
A cidade nervosa. Irritada. Mas o cacimbão tinha que ser termina. Era agora
capricho meu. Os tiros sacudiam o solo. A trinca de negros ria, na cozinha, com
as explosões, cabriolando; e gritava pilhérias e fazia o passo:
-
Lá vai mecha! Pum! Eita seiscentas picas! Pum! Pum!
-
Arrasa, diabo! Quero ver feder, esta pinoia... Xô!
De
manhã a trempe de pretos entrava no fundo do cacimbão, para arrancar as pedras
com cunhas de aço. Um caixão subia e descia num carretel, despejando os
destroços das explosões. Eu ficava, de cócoras, na boca do cacimbão, cubando o
movimento. Fazendo cálculos mentais, doido que a água rebentasse das veias da
pedra-rocha. Inquieto, descia pela escada para examinar o fundo do cacimbão,
que já minava água. O calor lá dentro aumentava. Mestre Salviano garantia que,
com mais três palmos, o lençol d’água espirrava. Não havia mais dúvida. A
despesa crescia, e eu já tomava dinheiro emprestado para empurrar o serviço.
Aborrecido, censurava:
-
Você só tem fama, negro. Cadê seus cálculos? Você é um potoqueiro. Um cagador
de goma. Cadê a água?
O
negro ficava calado, pesaroso e ofendido, marretando a pedra com raiva,
furioso, seminu e suado. Ninguém contava mais fanfarronadas nem havia poesia nas histórias e aventuras.~
***
No
fórum, o juiz interrogava um réu, quando se ouviu estrondos nos trabalhos do
cacimbão. Eu riscava bonecos num papel.
O juiz riu, zombeteiro, e me perguntou se aquilo não tinha mais fim.
Mascarei-me de coragem e fiquei meio bruto;
-
Já está revendo água. O negro diz que são os últimos tiros. O lençol d’água está
rebentando. É um abacaxi. Mas vai... vai ou lasca! Eu arranco o cabaço desta
cidade! - e ri-me.
Zé
Bonitinho entrou na sala de audiências, de supetão, cansado, sujo e choroso. E
foi logo dizendo:
-Salviano
morreu dentro do cacimbão! – e disparou num choro tremido, enxugando as
lágrimas com a carapuça de um velho chapéu de massa, sem cor e grudado.
-
Como diabo foi isso? – perguntei, chocado.
-
Ele tocou fogo no estopim e quando foi subindo na escada, ela se quebrou em
dois pedaços e ficou ele preso, dentro... Nem gritou por gente! Que desgraça,
meu Deus!
-
Só era ter arrancado logo o estopim do fogo. Que diabo! Burro! Foi um suicídio.
Que diabo! Foi a cachaça danada!
Saí
correndo, emocionado. Era a praga das beatas.
***
Estudei
uma resposta aos meus perseguidores. Mandei fazer um enterro de rico para o
negro. Como se fosse ele um grande da terra, um coronel feudal, com toas as
glórias fúnebres – sinal dobrado, disco na difusora, coroas, corpo encomendado
e o ovão pobre acompanhado o caixão ao cemitério. Comentários pulavam do
burburinho da massa, fazendo a biografia do mestre:
-
Era um negro gozado. Vai luxando, o Pai dos Homens!
Na
beira da cova, fiz um discurso violento, romântico e sonhador, que foi um hino
de esperança aos trabalhadores, como classe dominante do futuro. Foi um
escândalo encravado como um marco na história de Cajazeiras. Abalei os
alicerces sociais da cidade. O bispo, meu tio, teve um enfarto, quando me
censurava.
Não
satisfeito, vendi a casa. Entreguei à família do finado dez contos de réis.
Mandei construir, na entrada do cemitério, um mausoléu, em forma de pirâmide,
faraônico, sobre a sepultura do preto. Abafou os túmulos das famílias dos
coronéis. E na lusa a inscrição – AQUI JAZ MESTRE JOSÉ SALVIANO DA SILVA, O
PAIS DOS HOMENS – 13-8-40.
Briguei
com meus parentes. O velo meu pai nunca mais fez barba nem saiu de casa. Estava
desgostoso. E eu também.
Numa
noite urgente, escura e sem futuro, desesperado, arrumei minha bagagem e meus
códigos, resolvido a pregar Direito noutra freguesia. Empanturrado de tristeza,
zarpei numa boleia de caminhão carregado de fardos de algodão, quando ainda era
preta a madrugada. Raposas e preás, tontos, ofuscados pelos faróis do carro,
procuravam cruzar a rodagem às cambalhotas. Vi também vultos magros, sombrios
na estada do meu futuro, carregando fardos cívicos de uma vida inútil e sem
esperança num país de ladrões. Tive raiva – um povo inconsciente de sua força e
de seus direitos brutalizado por eia dúzia de sacanas. Trinquei os dentes.
O
caminhão roncava forte, subindo e descendo ladeiras, dançando nos catabis
bocas-de-pilão. Rodávamos, eu e ele, aos solavancos, pelos caminhos do mundo.
Deu um mundo perdido. Tive ódio e fazia frio. O conselho de meu pai foi se
chegando, de mansinho, fungado, sob um bigodão grosso e aparado:
-
“- Menino, em terra de sapo de cócoras com ele...”
Pensei
em regenerar-me. Ganhar dinheiro. Ser rico, poderoso, reacionário, como são os
exploradores do povo. Ri-me sinistramente, preocupado em criar juízo, voltar
vitorioso e festejado. Vi uma fila de bajuladores. Os galos cocoricavam.
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