Causa perdida, o Serviço foi achar em Portugal. Na noite de 17 de
junho de 1975 cinco senhores reuniram-se no Rio de Janeiro. Quatro
eram oficiais da Agência do SNI.36 O quinto era o general Antônio de
Spínola, o legendário líder da Revolução Portuguesa de abril de 1974.
Encantara o mundo ao precipitar a queda da ditadura salazarista com
um livro, capa e monóculo. Eleito presidente da República, vira-se
emparedado pela radicalização esquerdista do movimento que
simbolizara. Tivera as convicções neocolonialistas atropeladas pelo
desmoronamento do império d’além-mar. Por conservador, não
conseguia manobrar a desordem. Encurralado pelo poder paralegal do
Movimento das Forças Armadas, não conseguia manter a ordem. Como
seu monóculo, passara de romântico a anacrônico, e renunciara em
setembro, cinco meses depois de empossado.
Uma ironia da história portuguesa levara Spínola a se hospedar
num hotel de Copacabana pouco antes do primeiro aniversário do golpe
que trouxera para o Rio (e para Copacabana) o presidente Américo
Thomaz e o primeiro-ministro Marcello Caetano. Outra, da história do
regime brasileiro, o trouxera como asilado, precisamente numa época
em que Geisel reclamava da generosidade do governo de Lisboa para
com a diáspora nacional, que restabelecia em Portugal, em ponto
menor, a base perdida no Chile. Chegara a pensar em denunciar o
tratado que permitia o movimento dos cidadãos entre os dois países. Por maior que tenha sido o apoio dado pelos esquerdistas
portugueses aos exilados brasileiros, não se compara em audácia,
ilegalidade e subversão à conversa que Spínola teve com os cinco
interlocutores do SNI.
O general expôs seus temores: o Ocidente não evoluíra o bastante
para conter o Movimento Comunista Internacional, e era possível que os
Estados Unidos tivessem concebido uma estratégia em que seu país
seria sacrificado “para servir de vacina e anticorpos para o mundo
ocidental”. Dito isso, informava que pusera em andamento um plano de
invasão de Portugal. O ataque seria desfechado em até seis meses, a
partir da Espanha. Contava com uma tropa de 5 mil combatentes
recrutados na Rodésia, na África do Sul e no Zaire. Esperava receber
armamento americano e não precisava de dinheiro. Pedia ao SNI que lhe
conseguisse liberdade de movimento para viajar pelo mundo e uma
“área de treinamento” onde pudesse alojar Seiscentos homens, por três
meses. Seriam portugueses do Continente e de Angola, e outros já
exilados no Brasil.
Geisel leu um relatório da conversa e fulminou-a: “Não podemos e
nem devemos nos engajar!”.
Em tese, era o suficiente para que as conversas se encerrassem.
Decisão semelhante fora tomada pelo embaixador dos Estados Unidos
em Lisboa, Frank Carlucci. Ele não dava crédito a Spínola e chegara a
captar ecos de seus projetos. Solicitara a todos os setores da
administração americana, dos serviços comerciais às missões militares,
que evitassem qualquer contato com o general.41 A determinação de
Geisel foi contornada. Duas semanas depois do encontro do Rio,
Spínola esteve em Brasília e reuniu-se com o chefe da Agência Central
do Serviço.
Spínola e os coronéis do SNI comprometeram-se a manter suas
tratativas em segredo, mas, no dia 22 de julho, Helio Fernandes, na
Tribuna da Imprensa, informou que o general acabara de regressar de
um giro pela Europa. Viajara de óculos escuros, sem passar pelos
balcões das companhias aéreas. A Tribuna estava nas bancas quando
Spínola voltou ao SNI. Narrou o sucesso de sua viagem e mudou a lista
de pedidos. Já não queria um campo de treinamento, pois dizia tê-lo
conseguido no Paraguai. A tropa precisaria apenas de algum apoio
logístico, material de acampamento, comida e fardas. Se o governo
brasileiro quisesse, poderia lhe vender armas, devidamente
descaracterizadas. Pedia ainda uma base de transmissões clandestinas
e um passaporte falso.
Ao processar as informações desse segundo encontro, o general
Castro afastou-se da narrativa quase seca que a Agência do Rio
remetera a Brasília em junho. Não se tratava mais de um relatório. Era
uma Informação destinada a Figueiredo e intitulada Apoio ao General
Spínola para Reação em Portugal. Descrevia uma gestão. O SNI buscara
informações com seus contatos americanos, paraguaios e alemães.
Fontes do Departamento de Estado contaram que o general os
procurara. A CIA não disse uma palavra. Os paraguaios confirmaram a
possibilidade de ceder a área de treinamento, mas não estavam
convencidos de que Spínola tivesse cacife para tamanha iniciativa. Os
alemães mostraram-se interessados em alterar os rumos da crise
portuguesa, com a condição de que pudessem fazê-lo sem deixar as
impressões digitais. Também duvidavam da liderança do general.
Estavam dispostos a conversar, desde que “houvesse uma decisão por
parte do Brasil de apoiar veladamente a Spínola”. Se necessário,
mandariam um funcionário, com identidade falsa, para falar com o SNI.
Castro encorpou seu serviço relatando dois outros contatos. O
primeiro, com um coronel que se asilara junto com Spínola e acabara de
passar alguns dias, como clandestino, em Portugal. Ele contava que a
CIA aceitara fornecer granadas de mão, explosivos, espoletas e
detonadores aos expedicionários. O segundo contato, com um
português exilado no Brasil e um ex-hierarca da polícia secreta
salazarista decididos a entrar em Portugal com cinqüenta homens, para
“apoiar os grupos que têm reagido contra o atual Governo”. Precisavam
de armas leves.
O SNI conversava com duas organizações irmãs, porém diversas. Spínola e sua força expedicionária encarnavam o Movimento Democrático para a Libertação de Portugal. O ex-policial estava mais próximo do Exército de Libertação de Portugal, organização chefiada pelo ex-subchefe da PIDE. Entre maio e agosto a radicalização portuguesa foi exacerbada por um surto terrorista que produziu explosões e vinte incêndios. O ELP tinha bases nas colônias desalazaristas do Brasil, dos Estados Unidos, da Venezuela e da Espanha.
Jogo pesado, movido pela obstinação do general Castro. Ele levara dez dias refinando as informações que obtivera de Spínola. Quando as encaminhou a Figueiredo, seu chefe informou-o de que só Geisel poderia dizer o que fazer. O presidente registrou as instruções pessoais que deu ao chefe da Agência Central do SNI: “O Brasil não pode envolver-se”. Ainda assim, devia-se ouvir o enviado do serviço de inteligência alemão, que estava a caminho do Brasil para discutir a questão portuguesa. O agente chegou no dia 10 de agosto. Aceitava ajudar, mas não queria que seu país fosse envolvido na confusão. Basicamente, queria trocar figurinhas, pois duvidava que a oposição dispusesse de um líder. Informou que um dos oficiais de Spínola, instalado em Salamanca, na Espanha, tinha entre 1200 e 1500 homens. Julgava possível uma invasão maciça, a partir da Espanha, mas sabia que os conspiradores preferiam agir infiltrando pequenos grupos de vinte ou 25 pessoas em Portugal. Oferecia dinheiro, armas e contatos.
Numa nova construção, o SNI admitiu que a ajuda brasileira poderia limitar-se a um campo de treinamento, próximo aos aeroportos do Galeão ou de Viracopos, onde os combatentes passariam alguns dias, até embarcar em vôos de empresas que chegassem à Espanha sem escalas em Havana ou Lisboa. Castro sugeriu a Geisel que o Itamaraty desse aos portugueses um pouco de dinheiro (de 10 mil a 15 mil dólares) e de armamento. Seriam 34 submetralhadoras calibre 45, dezesseis pistolas e dois fuzis automáticos com bocais lançadores de granadas. Esclarecia que era equipamento velho, descaracterizado, apreendido antes de 1973. (O arsenal de todas as organizações terroristas de esquerda nunca teve 34 metralhadoras, muito menos fuzis equipados para lançar granadas. É possível que essas armas tenham vindo do braço terrorista do CIE.)49 Sugeriu também que se usasse a rádio Jornal do Commercio, do Recife, para algumas transmissões clandestinas.
A documentação do episódio morreu aí. Os sonhos de Spínola e sua conexão com o radicalismo da colônia portuguesa no Brasil prosseguiram. O general deu uma entrevista a Carlos Lacerda, que vivia uma fase de assombro diante da esquerdização de Portugal, e nela produziu-se o seguinte trecho:
— Quando será o desembarque, meu general?
No seu rosto habitualmente triste, um sorriso se abre. É um segredo ou ainda não foi fixada uma data. Mas diz-me algo que me tranquiliza e que um dia toda a gente saberá.
O desembarque de Spínola tornara-se tão público quanto inútil. Quando a entrevista foi publicada no Brasil, a Revolução Portuguesa finara-se. A maioria profissional e moderada das forças armadas, disposta a conter a anarquia nos quartéis e o radicalismo esquerdista nas ruas, derrubara o governo do primeiro-ministro Vasco Gonçalves.
No início de 1976 Spínola fechou sua casa no Rio e foi para a França. Tentou entrar na Espanha, onde supunha ter uma base de operações. Foi expulso, devolvido à França e logo enxotado para Genebra. Em abril os suíços mandaram-no embora. Retornou ao Brasil sob o compromisso de aquietar-se. Era carta fora do baralho.
Em suas memórias, Geisel classificou a proposta de invasão de Portugal como “loucura” e “fantasia”, informando que os militares portugueses “foram francamente dissuadidos de qualquer ação dessa natureza”. É certo que o presidente não estimulou o SNI. É provável que tenha considerado fantasiosa a iniciativa, mas não há registro de ação dissuasória do governo brasileiro sobre os subversivos portugueses.
Spínola continuou circulando com os papéis falsos que pedira ao SNI. Em dezembro de 1976 um funcionário da embaixada da Suíça em Brasília deixou sobre a mesa do encarregado da Divisão da Europa do Ministério das Relações Exteriores um documento sem timbre nem assinatura. Era um sussurro documentado. Informava que o general estava em seu país, com dois passaportes. Num, era o cidadão brasileiro Antonio Ribeiro. No outro, era português, e registrava-se sua identidade completa: Antônio Sebastião Ribeiro de Spínola. Com educação e ironia, o governo suíço perguntava ao Itamaraty se a supressão do sobrenome paterno (Spínola) para a construção da identidade de Antonio Ribeiro estava de acordo com as leis do país. Lembravam que havia uma denúncia de que o general usava um passaporte com identidade falsa. Finalmente, indagavam por que o governo entregara ao general dois documentos, um de estrangeiro e outro de brasileiro, com informações insuficientes.
Como e por que o general embaralhou os documentos e as identidades, não se sabe. Também é difícil entender por que Spínola se fazia passar por Ribeiro, pois em agosto de 1976 estivera ostensivamente em Lisboa, sem ser molestado. A anarquia militar portuguesa, iniciada em 1974, fora substituída por um governo constitucional, com assento no Conselho da Europa.
O chanceler Azeredo da Silveira informou a Geisel que haveria de providenciar a discreta apreensão do passaporte turbinado.
O SNI, que dera a Spínola dois passaportes (um deles fraudulento), centralizava o confisco desse mesmo documento aos cidadãos brasileiros que desejava punir. As embaixadas e os consulados tinham um Fichário de Pessoas com Registro de Atividades Nocivas à Segurança Nacional. Quaisquer solicitações feitas por esses cidadãos deveriam ser comunicadas a Brasília.
O ex-presidente português tinha passaportes de sobra, enquanto a ditadura passara doze anos negando-o ao ex-presidente brasileiro João Goulart. Ele viajava com um passaporte de favor, dado pelo ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Quando dois ex-parlamentares uruguaios que viviam exilados na Argentina foram sequestrados e mortos, Jango avisou ao governo brasileiro que temia por sua vida.
Enquanto a gestão tramitava em Brasília, apareceu outro cadáver em Buenos Aires. O ex-presidente boliviano general Juan José Torres foi achado embaixo de uma ponte, com os olhos vendados, um tiro na cabeça e dois no pescoço. Goulart recebeu o passaporte no dia 8 de junho, quatro dias depois da execução de Torres. Como ele fizera saberque pretendia visitar seu cardiologista, em Lyon, deram-lhe umacaderneta válida só para a França.
Ao mesmo tempo que o Serviço se metia em operações clandestinas com o general Spínola, o braço dissidente da Comunidade que operava debaixo de seu nariz procurava desmantelar iniciativas de Geisel com as quais não concordara. Fazia isso valendo-se dos métodos que o regime se habituara a utilizar. Na segunda semana de agosto de 1974 um coronel do SNI chegou ao Itamaraty para uma reunião. Seu propósito era colher uma prova de que o governo brasileiro oferecia concessões indevidas à delegação chinesa que negociava o reatamento de relações entre os dois países. Falhou.